Por João Victor Galvão, Luanna Mendes e Rebeca Oliveira
O relógio do despertador indicava 4h30 de uma segunda-feira, em janeiro de 2020. Menina de interior, Giulia da Mata se preparava para pegar a van em direção à capital. Com apenas 16 anos, acabara de terminar o ensino médio, e estava decidida a estudar em um dos melhores cursinhos de Goiânia a fim de ser aprovada em Medicina na Universidade Federal. Para isso, ela teve que deixar sua família no Pará e morar com seu pai biológico, com quem nunca teve muita intimidade.
O frio matinal era quase tão dolorido quanto estar longe de seus pais. Por ser a única menina entre três irmãos, sempre foi tratada como princesa em casa. Além disso, em sua cidade natal, a 1.200 quilômetros de onde se encontrava agora, Giulia sempre foi considerada a melhor da turma – uma aluna exemplar, ótima em todas as disciplinas e ganhava ainda mais destaque por sua excelência em exatas.
Já na capital, ela teve “um choque de realidade!”, como disse em tom levemente humorado. “Vi que tinha uns 50 cursinhos com mil alunos cada e eu me sentia a mais burra de todos os alunos de todos os cursinhos. Percebi que eu só era inteligente assim porque eu estava numa cidade pequena, num estado pequeno, numa escola pequena”, afirmou a estudante.
Não foi fácil para Giulia, de repente, ter que manter uma rotina de estudos tão exaustiva e longe do abraço caloroso dos pais. Foram dois meses saindo de casa para estudar às 4h30 e voltando apenas depois das 22h. A distância da família, a pressão para se sair bem no cursinho, a falta de tempo para cuidar da saúde – todos esses fatores excederam o limite de peso que ela aguentava naquele momento e logo desencadearam ansiedade e depressão na jovem estudante.
Chegando na metade do mês de março, a pandemia da Covid-19 foi decretada e Giulia não viu alternativa a não ser voltar para casa no Pará. Naquele ponto, já tinha até desistido de cursar Medicina. “Aquela rotina não era para mim. Na minha cabeça, todo mundo ali era mais inteligente e melhor do que eu. Foi uma experiência tão ruim que cheguei a pegar um ‘ranço’ do curso”, acrescentou.
Ao voltar para casa, Giulia começou o tratamento contra a ansiedade e depressão. Cuidar da saúde perto da família e dos amados pets de estimação era uma tarefa mais leve. Por ter desistido de Medicina, optou pela segunda opção de curso: Arquitetura e Urbanismo. Para ela, era melhor “ir pelo caminho mais fácil” e focar num curso que ela tinha certeza da aprovação.
O ano novo chegou e Giulia decidiu frequentar novamente o cursinho em Goiânia, dessa vez para focar em sua segunda opção de curso. Ao lembrar da árdua rotina que tivera anteriormente, optou por morar sozinha num apartamento na capital, assim não teria que acordar de madrugada todos os dias e economizaria um bom tempo no transporte que poderia usar para descansar um pouco mais.
Ainda assim, ela não estava satisfeita. A solidão batia com mais força agora e novamente ela se via presa numa rotina que não lhe pertencia. “Eu tinha 17 anos, ainda era muito nova, imatura. Só fui para lá (Goiânia) porque não tinha como ficar sem estudar, sem fazer nada. Foi mais uma experiência frustrante. Eu só sobrevivia, tomava meus remédios e estudava no cursinho. Não consigo nem me lembrar direito de nada que vivi lá”, relatou a estudante.
Na metade de 2021, Giulia jogou sua nota do Enem para Arquitetura e Urbanismo na Universidade Estadual de Goiás (UEG) e foi aprovada. Mas, como o mundo inteiro ainda enfrentava uma pandemia, as aulas seriam remotas. Da Mata então não viu motivos para continuar na capital. Ela decidiu mais uma vez voltar para sua cidade e estudar remotamente perto de seus pais, que ficaram felizes com a decisão.
“Eu me dediquei no começo, mas no fundo eu sabia que não era o curso que eu queria e meus pais também sabiam disso. Eu ainda não estava psicologicamente bem para fazer uma faculdade, ainda mais uma que eu não queria, de um jeito que eu não queria (online). Eu não tinha ânimo, estava afundada em depressão. Foi mais um período que eu não consigo me lembrar direito sobre, apesar de ter feito dois semestres”, acrescentou Giulia.
Com o imensurável apoio de seus pais, depois de longas conversas semanais com eles, a estudante deixou o orgulho de lado e assumiu que desistir de Arquitetura para focar novamente na aprovação em Medicina seria o melhor a fazer. Cursar Medicina era o que seu coração pedia, e, ao continuar negando esse sonho, ela não estava mentindo apenas para todos ao seu redor, mas para si mesma.
A partir da nova decisão, já quase na metade de 2022, Giulia se matriculou em um cursinho preparatório que acabara de abrir em sua cidade do interior. Ela tinha finalmente entendido que, naquele momento, estudar tendo sua família por perto e o aconchego de sua casa era tudo o que ela precisava.
Mais uma edição do Enem se aproximava. Depois de seis meses de preparo no cursinho, Giulia acreditava estar pronta para realizar a prova e chegar à tão sonhada aprovação, pois tinha realizado inúmeros simulados de modelos nacionais nos quais ela havia ido bem. Ela também continuava cuidando de sua saúde mental, ainda fragilizada. Continuava tomando seus remédios, suas idas ao psiquiatra e psicóloga. Nada podia dar errado dessa vez, certo? Errado.
“Eu estava indo bem, só que no dia do Enem eu acordei doente! Acordei com febre, vomitando sem parar, com muita dor no estômago, dor de cabeça, tudo de ruim. Falei ‘meu Deus, nunca fico doente, do nada estou com uma virose’”, relembrou.
Mesmo doente, Giulia fez a prova. E do jeito que ela acordou, ela seguiu o dia: passando mal. Foi um longo dia entre resolver questões e ir vomitar no banheiro da escola. A estudante não conseguiu terminar o primeiro dia de exame e voltou para casa frustrada. Assim que chegou, já não sentia mais nada e passou o resto da semana bem.
No segundo dia de prova, no fim de semana seguinte, ela acordou passando mal, de novo. Foi possível ouvir a frustração em sua voz ao recordar do acontecimento. “Foi aí que eu me toquei que era tudo psicológico. Tudo isso estava acontecendo só porque eu não estava bem psicologicamente. Depois disso, cheguei a alterar meus remédios. Foi muito frustrante, eu quis desistir de novo, porque eu me sentia academicamente preparada, mas psicologicamente não, o que me fez pensar que Medicina não era para mim mesmo”.
Ao receber sua nota em janeiro de 2023, a decepção foi certa, apesar de já esperada. Mais uma vez, ela teve que superar o pensamento de querer desistir. Por já ter enfrentado tantos obstáculos, desistir não fazia mais sentido. Giulia reuniu suas forças e voltou a estudar no cursinho em março do mesmo ano, sempre com o apoio dos pais – detalhe este que mais para frente ela descobriria ser uma peça fundamental em sua jornada.
O desempenho da estudante naquele ano melhorou drasticamente. Ela conseguiu notas melhores no cursinho e aos poucos teve sua autoconfiança recuperada. Pouco antes de mais uma edição do Enem, ela foi aprovada em Medicina na UniRV (Universidade de Rio Verde).
Apesar da conquista, ela ainda queria sua aprovação numa Universidade Federal. E, já com uma aprovação, conseguiu fazer a prova do Enem de forma tranquila e confiante. Tão confiante que, ao sair da prova no segundo dia do exame, disse em tom de muita alegria para seu padrasto – quem ela carinhosamente considera seu pai – que havia acertado 41 questões em matemática. Ao ser confrontada numa brincadeira pelo padrasto sobre estar “se achando demais”, Giulia declarou que dessa vez estava mais confiante porque tinha estudado e sabia que sua realidade era diferente das vezes anteriores. Mais tarde, conferindo o gabarito, viu que tinha mesmo acertado 42 questões.
As notas saíram no início de 2024, e para a imensa felicidade de Giulia e sua família, ela conquistou sua almejada aprovação em Medicina na Universidade do Estado do Pará (UEPA).
Hoje, ela está finalizando o primeiro semestre do curso, muito orgulhosa de sua trajetória e finalmente satisfeita com a rotina que leva. Ela continua tendo apoio dos pais, que fizeram o possível para ela ter um cantinho aconchegante em sua nova cidade. Suas expectativas em relação à Universidade foram superadas e agora ela sente que está no caminho certo.
“O cursinho não tinha uma estrutura muito boa em comparação ao de Goiânia, foi o básico bem-feito, mas não foi o que me fez passar. Eu tive a presença dos meus pais, psiquiatra, psicólogo, estava cuidando da minha saúde mental. Meus pais nunca me desestimularam, isso que me fez passar”, finalizou Giulia.
Por outra perspectiva
Quando Luana Queiroz ingressou no terceiro ano do ensino médio, sua cabeça estava cheia de dúvidas. O que eu quero cursar? Como decidir o que fazer pelo resto da vida? E se eu não gostar? Ela sabia que queria seguir uma carreira que pudesse ajudar as pessoas, mas não tinha ideia de qual seria o caminho. As escolhas pareciam inúmeras e o futuro incerto, então ela decidiu recorrer ao que parecia ser sua única salvação. “Eu orava muito, pedindo para Deus me mostrar o que eu deveria fazer. Pedia pra ele me dar uma direção.”
Nas férias do meio do ano, quando a rotina escolar deu uma pausa, que a resposta veio de forma clara e direta, quase que iluminada. “Deus me mostrou que a Medicina era o meu caminho. Era como se tudo tivesse se encaixado de repente. Eu percebi que aquela era a profissão com a qual eu poderia realmente fazer a diferença na vida das pessoas.” Decidida, Luana se matriculou em um cursinho preparatório para o vestibular, visando uma rotina de estudos regrada para alcançar seu objetivo de ingressar na UFG. Mas logo a realidade a pegou de surpresa: em março de 2020, a pandemia chegou e, com ela, a mudança repentina para o formato online; isso definitivamente mudou seus planos e ela passou a recalcular a rota.
O mundo estava um completo caos, tudo fechado e milhares de mortes todos os dias, o cursinho que ela tinha começado precisou ser adaptado para as aulas virtuais, mas o novo formato não funcionou para Luana. “Eu não conseguia me concentrar, não tinha disciplina em casa. As aulas online não eram a mesma coisa e fugiam completamente da minha rotina. Eu me sentia perdida, sem motivação para continuar”, lembra. Com o isolamento social, sem amigos por perto e a incerteza do futuro, ela se viu sem energia para estudar e tudo isso a afetou emocionalmente. O foco que ela havia prometido para si mesma desapareceu, o sonho de passar em medicina parecia mais distante do que nunca e sua saúde mental já não era a mesma.
“Foram os dois anos mais difíceis pra mim”. Os anos de 2020 e 2021 se passaram quase sem estudos para ela. A cada tentativa de voltar ao ritmo, Luana se via mais ansiosa e sem forças. “Eu sabia que precisava estudar, mas não conseguia sair do lugar, simplesmente não conseguia estudar absolutamente nada. A pandemia tirou muito da minha energia e do meu foco e eu não sabia nem por onde começar”, conta.
Somente em 2022, com o fim das restrições mais severas da pandemia, ela se permitiu recomeçar e se matriculou novamente em um cursinho, agora com a esperança renovada. No entanto, a frustração logo voltou e parecia que seu sonho estava em risco novamente. O cursinho que ela havia escolhido era fraco e a estrutura que ofereciam não era suficiente para ela alcançar a tão sonhada vaga na UFG. “Eu percebi que o material não era o suficiente e se eu não mudasse de abordagem, não conseguiria o que tanto queria”.
Com a chegada de 2023, foram tantas tentativas frustradas que Luana tomou uma decisão radical: voltar para o cursinho que havia começado em 2020. Porém, dessa vez ela iria com uma nova perspectiva, mais madura e focada. “Eu sabia que não podia mais perder tempo. Estava decidida a estudar de verdade, com uma rotina muito bem pensada e me preocupando muito mais com minha saúde mental”, afirma.
E assim ela iniciava uma rotina pesada e cansativa, mas que poderia lhe trazer grandes resultados. O ano foi intensamente dedicado aos estudos. “Eu acompanhava a teoria no cursinho e fazia muitos exercícios do Enem para estimular o máximo possível meu cérebro”, sua rotina se resumia a assistir às aulas, buscar listas de exercícios do Enem na internet e responder o máximo que conseguisse. Era extremamente exaustivo, mas se imaginar nas aulas e nos laboratórios faziam com que Luana minimizasse aquilo.
Depois de meses de intensos estudos, chegou o tão esperado dia da prova. Mas dessa vez a estudante teve um comportamento atípico comparado aos outros anos, Luana fez as provas com uma tranquilidade que nunca tivera antes. “Nos anos anteriores, eu ficava extremamente nervosa e ansiosa. Mas, este ano, eu estava tranquila, sabendo que já havia dado o meu melhor e tendo a certeza de que o que fosse pra acontecer iria acontecer”, conta. Ao sair da prova, ela se sentiu leve, como se o peso de anos de ansiedade tivesse finalmente sido tirado de seus ombros.
Depois da prova, durante os meses de espera pelos resultados, Luana se permitiu viver as merecidas férias e se dar um descanso.
Em fevereiro deste ano, mesmo com a incerteza se seria ou não aprovada, ela retornou à rotina de estudos já se preparando para mais um ano caso não conseguisse a tão sonhada vaga. Então, em março, a surpresa veio. Luana foi aprovada para o curso de Medicina na UFG, por meio do processo seletivo para vagas remanescentes. “Eu não esperava, mas no fundo sabia que essa era a minha vez. Depois de tantos anos tentando, finalmente deu certo”, contou em um misto de alívio e felicidade.