quinta-feira, 26 de dezembro de 2024
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Mulheres lideram a Bancada do Cocar e põem a questão indígena em evidência na Câmara

Mulheres indígenas conquistam espaços no Legislativo e no Executivo com as eleições de 2022 e têm pela frente grandes desafios na luta por direitos.

Foto: reprodução/Agência Brasil/Fabio Rodrigues-Pozzebom

As eleições de 2022 mudaram o cenário político nacional com a eleição de deputados indígenas para a Câmara dos Deputados. No último pleito, cinco representantes dos povos originários foram eleitos deputados federais. Eles compõem hoje a chamada Bancada do Cocar. O número ainda é pequeno diante do total de 513 deputados que compõem a Casa, mas representa um salto em relação aos anos anteriores, pois desde a eleição do Cacique Juruna (PDT-RJ), em 1986, nenhum representante indígena foi eleito para a Câmara.

Em 2014, foram registradas 84 candidaturas indígenas, porém ninguém foi eleito. Em 2022, o número mais que o dobrou (175), garantindo assim a representação na Câmara Federal. De uma só vez, foram eleitos Célia Xakriabá (PSOL-MG), Juliana Cardoso (PT-SP), Paulo Guedes (PT-MG), Silvia Waiãpi (PL-AP) e Sônia Guajajara (PSOL-SP). Os indígenas eleitos romperam uma barreira que manteve representantes dos povos originários distantes da Câmara dos Deputados por 36 anos. O recorde de candidaturas e de eleitos indígenas revela uma outra face: o importante papel das mulheres indígenas na política. Dos cinco eleitos para a Câmara, quatro são mulheres.

A deputada federal Célia Xakriabá (PSOL) é a primeira indígena a ser eleita por Minas Gerais com um saldo de mais de 100 mil votos. Doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi eleita com 101.154 votos para defender em seu mandato a demarcação de territórios indígenas, o reconhecimento de profissionais indígenas e quilombolas (principalmente na educação), a reforma agrária e a titulação dos quilombos.

O resultado recente das urnas se une à nova política adotada pelo atual Governo Federal, que cumpriu a promessa de abrir espaço para os povos originários. Foi criado o Ministério dos Povos Indígenas e foram indicadas lideranças para presidir os principais órgãos executivos ligados aos povos originários. Para presidir este ministério foi nomeada a deputada Sônia Guajajara, destacando a importância da questão indígena no atual governo.

Para a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), foi nomeada a advogada Joênia Wapichana, quebrando um jejum de mais de 50 anos, quando o último indígena presidiu a instituição. Nascida em Boa Vista (Roraima), Joênia Wapichana se tornou a primeira mulher indígena a exercer a advocacia no Brasil e a ocupar o cargo de deputada federal, em 2018.

A nomeação da líder política indígena Sônia Guajajara surge das necessidades identificadas pelo Grupo de Trabalho dos Povos Indígenas durante a transição do governo de Jair Bolsonaro (PL) para Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Entre os muitos objetivos da pasta, estão a implementação de política indigenista e a garantia à promoção de direitos que visam a proteção dos povos originários. 

Apenas cinco meses após tomarem posse, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e Sônia Guajajara sofreram fortes pressões pelo Congresso Nacional com a tentativa de desmonte dos seus ministérios. A Câmara e o Senado modificaram a Medida Provisória da Reestruturação dos Ministérios do atual governo, retratando as insatisfação com a articulação que dá visibilidade à temática ambiental e indígena. A aprovação foi negociada até o último momento, mas o governo sofreu uma derrota tanto na Câmara como no Senado.

Desafios

Apesar dos avanços das mulheres na política, elas seguem enfrentando desafios e obstáculos na busca pelo protagonismo político. A situação é agravada pela falta de recursos financeiros durante campanhas eleitorais, preconceito com base nos estereótipos de gênero e a violência política, que juntos agravam a desigualdade de oportunidades em relação aos homens. 

Políticas de cotas têm sido o caminho encontrado para driblar as barreiras impostas às mulheres e a outras minorias para maior representatividade nos espaços de poder no Legislativo. A Lei nº 9.504/97, que determinou, a partir de 2009, a adoção de regra que estabelece que os partidos devem destinar no mínimo 30% das candidaturas para as mulheres, tem contribuído para aumentar a presença feminina nas eleições, mas não tem sido capaz de impedir fraudes à cota de gênero com candidaturas femininas fictícias. A lei também esbarra na representatividade retratada nas urnas. Em 2022, cerca de 10 mil mulheres se candidataram aos mais diversos cargos eletivos e apenas 311 se elegeram. 

A força da lei enfrenta ainda as manobras políticas para livrar os partidos políticos de punições por problemas nas prestações de contas e no cumprimento de cotas eleitorais. Uma dessas manobras deu origem à PEC 18/2021, que anistia os partidos que não cumpriram a cota de gênero (30% das candidaturas) nas últimas eleições ou que não utilizaram os percentuais mínimos de 30% de financiamento de campanhas de mulheres e de 5% de promoção e difusão da participação política de mulheres. A proposta foi aprovada pelo Congresso Nacional em abril deste ano.

Nomeações, discussões e leis apontam um caminho para o futuro ao mesmo tempo que acendem pequenas luzes para séculos de descaso e opressão feminina. No dia 23 de abril, durante Cerimônia realizada na Câmara dos Deputados para a criação da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, a deputada Federal Célia Xakriabá (PSOL) reconheceu que os tempos mudaram. “Quantas vezes fomos recebidas aqui, recepcionados (os povos indígenas) com spray de pimenta e balas de borracha, onde as portas foram trancadas para nós? E agora nós entramos pela porta da frente”, afirma. A deputada faz parte da recém criada Bancada do Cocar com representantes indígenas. 

Foto: reprodução/Agência Brasil/Fabio Rodrigues-Pozzebom

A deputada Célia Xakriabá tem usado as redes sociais ativamente para denunciar as tentativas no Congresso contra os direitos dos povos indígenas. Para a deputada, a luta indígena não vai ter fim enquanto não for resolvida a autonomia dos povos originários com a demarcação dos territórios indígenas. A questão do território nunca esteve mais atual e é hoje a questão central da luta dos povos originários tanto no Legislativo, como na Justiça. Com a discussão do polêmico Marco Temporal, aprovado na Câmara Federal, em maio, em forma de Projeto de Lei 490/07, e em tramitação no Senado, os territórios se tornaram o centro de uma disputa por terras no Brasil sendo travada em duas frentes, uma no Congresso Nacional e outra no STF. Se o projeto se tornar lei, pode promover a retirada de indígenas de terras ocupadas após a promulgação da Constituição de 1988.

Saiba mais sobre o Marco temporal na reportagem: Como a aprovação do Marco Temporal pode se tornar o maior desafio do século para os povos indígenas brasileiros

Para a ministra Sônia Guajajara, o marco temporal é um genocídio legislado.“Um Projeto de Lei que atenta contra a Constituição brasileira. Um ataque à nossa maior possibilidade de enfrentamento da crise climática”, denuncia Guajajara, em suas redes sociais.

Retomada do julgamento do Marco Temporal pelo STF está agendada para julho e vem mobilizando comunidades indígenas por todo o país – Fonte: Apib/Divulgação

Para Sônia Guajajara, Joênia Wapichana, Célia Xakriabá e tantas outras indígenas, além de questões urgentes como o marco temporal, elas têm também como desafio a luta por pautas comuns a todas as mulheres, mas que representam obstáculos ainda maiores entre os povos originários. A Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) é exemplo de movimento que defende os direitos essenciais das mulheres indígenas. A organização conta com mulheres indígenas de todos os biomas do Brasil e no ano passado conseguiu reunir mais de 5 mil mulheres em Brasília. Para setembro elas estão articulando a ida de 8 mil mulheres indígenas para ocupar o Distrito Federal com a Marcha das Mulheres Indígenas.

Em entrevista concedida à Agência Impressões da PUC Goiás, Jaque Kunã Aranduhá, liderança Guarani e Kaiowá e coordenadora regional da Anmiga, relembrou a importância da atuação feminina junto às causas indígenas. “Eu acho que a mulher indígena sempre esteve mobilizada, há mais de 500 anos”, afirmou Jaque Aranduhá.

Ela reconhece que as indígenas estão à disposição e na luta política no enfrentamento das diversas emergências vivenciadas por seu povo há mais de cinco séculos. Ciente dos inúmeros desafios que os povos originários vivem, a líder Guarani e Kaiowá vê a Bancada do Cocar como um sinal de esperança, abrindo espaço para corpos indígenas dentro da política nos seus diversos espaços. 

Líder Guarani e Kaiowá, Jaque Kunã Aranduhá, é também integrante da Grande Assembleia das Mulheres Kaiowá e Guarani (Kuñangue Aty Guasu) – Fonte: arquivo pessoal/Jaque Kunã Aranduhá

A mesma esperança por dias melhores é o que norteia a Anmiga na preparação de novas lideranças. “As meninas mais jovens têm acompanhado muito as nossas reuniões de formação dos territórios. Estamos trazendo as jovens, mas com muita dificuldade porque formar mulheres tem sido uma caminhada lenta”, explicou Jaque.

Luta das mulheres indígenas por educação

O mesmo desafio das mulheres indígenas é enfrentado na conquista de espaço dentro das universidades. De acordo com Jaque Kunã Aranduhá, os esforços estão começando a surtir efeito com um aumento significativo de indígenas em graduações, mestrados e doutorados.

Os objetivos da Anmiga de levar mais mulheres para as universidades e formar novas lideranças, vai ao encontro do que disse o líder indígena Xané atuante na ONU, Marcos Terena, na mesa sobre protagonismo, da Semana dos Povos Originários promovida pelo Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (IGPA), realizada em abril deste ano. Ele afirmou que seus anciãos os instruíram a sair das aldeias para estudar e aprender com os não-indígenas, a fim de retornarem e defenderem os direitos dos povos indígenas. E é exatamente isso que essas mulheres estão fazendo saindo de suas casas e tomando os espaços representativos da política para lutar em nome de todos, não só dos povos indígenas como em prol da humanidade, contra as mudanças climáticas, quando protegem o que resta das florestas no país.

Para Mirna Kambeba Omágua-Yetê Anaquiri, pesquisadora e doutora pelo Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual, os povos originários ainda enfrentam obstáculos causados pelo preconceito, racismo e pela mentalidade colonizadora. E vê com esperança o surgimento das novas lideranças tanto no legislativo como no executivo. “A Célia Xakriabá tem falado sobre a Bancada do Cocar e sobre pintar Brasília de urucum e jenipapo”, disse Anaquiri, se referindo à presença de indígenas no meio político ao lembrar o lema do Ministério dos Povos Indígenas: “Terra Indígena. Futuro Ancestral. Nunca mais um Brasil sem nós”

Foto: acervo pessoal/Ralyanara Moreira Freire

Mirna Anaquiri, assim como a líder Guarani e Kaiowá, Jaque Kunã Aranduhá, acredita na importância de se investir em futuras lideranças femininas. Ela destacou a preparação de uma marcha que terá como pauta a presença de mulheres indígenas no parlamento. Para Anaquiri, as mulheres têm se preparado para ocupar cada vez mais novos espaços, que, atualmente, são dominados por atitudes machistas e racistas. “Infelizmente a gente ainda é um grupo muito atacado por essas questões. Se formos pensar em vulnerabilidade, é uma luta intensa e diária”, afirmou Mirna. 

O destaque que as questões climáticas vêm tendo nos últimos meses no âmbito internacional, os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, as notícias do genocídio do povo Yanomami e as discussões em torno do Marco Temporal reforçam a importância da representatividade dos povos originários no meio político e, ao mesmo tempo, não deixa dúvidas que se uma participação efetiva das mulheres no poder tivesse tido início décadas atrás, hoje a situação dos povos originários no Brasil seria outra.

EQUIPE DE PRODUÇÃO JORNALÍSTICA:

Edição final: Noêmia Félix da Silva e Gabriella Serrano

Redação da reportagem: Júlia Leiva Costa

Repórteres: Andressa Silva, Estefhanny Garcia e Júlia Leiva Costa 

Fotografias: Reproduções da Agência Brasil/Apib/ Acervo pessoais (Jaque Kunã Aranduhá/Mirna Anaquiri).

Supervisão Geral: Noêmia Félix da Silva (Jornalismo Científico e Ambiental) e Carolina Zafino (Ciberjornalismo).

*O conteúdo produzido e publicado no Impressões é resultado de um processo de aprendizado pedagógico do curso de Jornalismo da PUC Goiás dos alunos nas disciplinas de Jornalismo Científico e Ambiental e Ciberjornalismo.