As mídias sociais se tornaram uma ferramenta estratégica de visibilidade e de luta para os povos indígenas. O seu impacto pode ser percebido, na recente e última grande crise humanitária dos povos Yanomamis. Graças a articulação das mídias indígenas, dentro e fora do Brasil, o genocídio dos Yanomamis foi noticiado pela grande mídia, gerando comoção internacional recebendo a atenção imediata do atual governo.
A ausência de uma política indigenista e ambiental pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) permitiu a invasão das terras dos Yanomamis por milhares de garimpeiros ilegais, o que gerou fome, violências, doenças e a contaminação por mercúrio dos rios, dos solos e dos peixes. Estes povos vivem basicamente da agricultura e da pesca. O consumo dos peixes contaminados causa diarreias, pneumonia, problemas neurológicos, deformidades nos fetos, entre diversos outros sintomas irreversíveis. Dados do DataSus, do Ministérios da Saúde, mostram que de 2019 a 2022, morreram 570 crianças, com menos de 5 anos, por desnutrição severa causada por fome, malária e outras doenças evitáveis com políticas públicas de saúde.
As organizações indígenas se articularam internacionalmente para chamar a atenção dos governantes e pressioná-los para uma resolução do problema, mas até 2022, não conseguiram nenhum amparo do governo federal daquele período. Até que em 2023, com a mudança no governo federal e no Congresso Nacional começaram as intervenções públicas para a mitigação e solução dessa grave crise, demonstrando a força das redes sociais e da Internet para pressionar os poderes públicos na busca de soluções.
O poder da comunicação já havia sido percebido há muitas décadas pelos povos indígenas que começaram a se articular em prol de construir uma mídia alternativa e independente, em contraposição às mídias tradicionais. Tudo isso graças às novas tecnologias e a equipamentos mais acessíveis, baratos, móveis e de amplo alcance social.
A comunicadora indígena e assessora especial da Deputada Célia Xakriabá (PSOL), Ingrid Sateré Mawé, entrevistada pela Agência Impressões, conta que tem se empenhado na construção de uma rede de comunicação indígena e na formação de profissionais não-indígenas, por entender a importância deste diálogo. “O Brasil tem sido governado pela internet. Quando começamos a constranger os políticos na internet surgiram efeitos. O Twitter, Instagram, Telegram, Whatsapp, são mecanismos que constrangem grande parte da classe política”, disse Ingrid.
Ingrid vem de uma longa formação política e, muito rápido, percebeu a importância da comunicação para a causa indígena. Ela foi a primeira mulher indígena candidata a governadora do Estado de Santa Catarina. Foi também presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação, daquele estado, e é colunista dos Diálogos Indígenas, no Portal Desacato. “Vim de uma criação em que eu sempre sentei na frente da TV para assistir o Jornal Nacional todos os dias e acompanhei as mudanças na mídia ao longo dos anos”, relatou.
A comunicadora indígena explica que as mídias independentes não recebem recursos do Governo Federal. Verbas essas que são distribuídas para as mídias tradicionais que cobrem os diversos assuntos de acordo com as suas linhas editoriais. Mesmo com o surgimento de novas mídias indígenas, Ingrid reclama que nos últimos 6 anos, os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro não contribuíram para a ampliação desse cenário da comunicação para e pelos povos indígenas.
Ela ressalta que mesmo, em um governo de esquerda, não tem havido repasse de verbas para as pequenas mídias e mídias independentes. “Eu acredito que se não olharmos e mudarmos os mecanismos de financiamento do próprio governo federal para a comunicação no nosso país, a gente vai continuar fortalecendo esse cenário”, argumenta.
Feminismo indígena
Ingrid, dos povos indígenas Santaré Mawé, é uma forte atuante no combate a cultura de estupro, realizando projetos e ações relacionadas a esse assunto. Segundo ela, existe uma maior reprodução desses crimes nos territórios dos povos originários e instituições educacionais, mas esta pauta é muito pouco abordada pela mídia tradicional. A comunicadora alega ainda que poucos dados são gerados pelo governo federal sobre a situação das mulheres indígenas nos vários territórios. E, portanto, poucas políticas para este grupo estão sendo implementadas.
A assessora parlamentar da bancada do Cocar, ressalta que a sua atuação se iniciou em prol da luta das mulheres indígenas. “Reconhecemos, que é graças à luta das mulheres feministas que nós estamos aqui, mas a gente acredita que ainda falta um ato mais afetuoso, tanto para abranger a luta das mulheres negras, mas também das mulheres indígenas”, afirma.
Mobilização
Segundo a assessora parlamentar, o diálogo entre comunicadores indígenas e não indígenas deve formar uma aliança priorizando a troca de saberes. É essencial que os jornalistas consigam se aprofundar nas informações necessárias, estudando o povo e o assunto abordado.
A dificuldade nos veículos corporativos é fazer com que a autonomia, o bioma e a diversidade cultural indígena não seja anulada, mas sim reconhecida e respeitada pelas próprias fontes de informação. Ingrid diz que quando a grande mídia cobre ou dá repercussão a uma pauta indígena, ela não tem como fontes indígenas para falar sobre o assunto. “Em momento nenhum a gente vê, por exemplo, a deputada Célia Xakriabá sendo convidada para fazer uma entrevista como outros homens brancos, que também são deputados federais para falar de assuntos indígenas”, reflete.
No entanto, Ingrid destaca que os movimentos indígenas não podem ficar só nas redes sociais e que as mobilizações nas ruas são essenciais para que haja cobertura jornalística nacional. Por isso, estão sendo realizadas constantes marchas e concentrações em Brasília pelos povos indígenas em torno do STF e do Congresso Nacional, devido a discussão do polêmico Marco Temporal.
Saiba mais sobre o Marco Temporal e os seus trâmites no Congresso Nacional e no STF na reportagem: Como a aprovação do Marco Temporal pode se tornar o maior desafio do século para os povos indígenas brasileiros
O olhar sobre o outro
Diante do cenário atual, devemos questionar se existe um outro motivo velado para que as pautas indigenistas não sejam tão trabalhadas como deveriam. A questão é que mesmo evoluídos na comunicação digital, estamos presos a um olhar ultrapassado que acaba impactando socialmente no valor notícia das grandes mídias. A antropóloga da PUC Goiás, Ludmilia Justino, explica que essas visões e imagens sobre os indígenas são formas etnocêntricas de ver o “outro” como diferente de “nós”, mas também é uma forma de depreciação da diferença.
“É uma forma de poder etnocêntrico, que se mantém ao longo do tempo. Os próprios indígenas têm buscado mudar esse cenário, mostrando quem eles realmente são através das mídias digitais, muitos deles falam abertamente dos seus costumes, suas práticas, tentando quebrar estes preconceitos. Os indígenas também têm buscado estudar e trabalhar fora das aldeias, e muitos deles ocupam posições significativas no cenário nacional”, informa a docente.
A antropóloga salienta que continuamos presos a uma visão de uma cultura dominante colonizadora caracterizada pela escassez da participação indígena. Isto significa que muitos acreditam que as crenças e valores indígenas não se encaixam dentro da cultura brasileira.
“A ideia de cultura dominante pode ser entendida como uma relação de poder desigual, se há uma cultura dominante é porque ela se acha com autoridade de dominar. E é pela dominação que os povos indígenas carregam uma história de dizimação, de espoliação, de subjugação. O que de fato os indígenas demonstram sobre suas crenças e valores é que elas foram fortes o suficiente para manterem vivos estes povos. Para resistir à dominação é preciso ter valores profundos que superem as injustiças e estas já duram mais de 500 anos”, alega Justino.
O que se observa também é que as grandes mídias tradicionais do país ainda são fechadas para as pautas indigenistas, assim como os círculos dos comunicadores que, em sua maioria, não contam com jornalistas indígenas. Ingrid Sateré Mawé ressalta que as vidas dos povos originários estão em constante risco e ameaça e isso não é mostrado mídia.
“O que incomoda eles [as grandes mídias e determinados grupos políticos] é que nós estamos vivos ainda e temos capacidade de mostrar ter mais inteligência do que [os que] dizem ser portadores de conhecimento. Não conseguiram nos exterminar durante esses 503 anos e eles tentam com outras armas, antigamente era com canhões, facas e atualmente é com a caneta que assina milhares de leis e infelizmente coloca em risco a vida de indígenas e não indígenas, fato que não tem sido alertado e atentado pelas grandes mídias”, resume.
Neste sentido, as redes sociais surgem como uma forma de promover uma maior compreensão e alteridade com os povos indígenas na sociedade brasileira. Além disso, a participação dos indígenas no digital possibilita que estes povos mostrem mais de sua cultura, suas crenças e valores.
“A participação dos indígenas nas mídias digitais tem esse papel, mas também, as lutas individuais para estudar e se tornarem pessoas bem-sucedidas, como Daniel Munduruku e Ailton Krenak se tornaram através da literatura, isso tem muita força, tanto para eles como para nós também. Passamos a respeitá-los ainda mais”, diz Ludmilia.
EQUIPE DE PRODUÇÃO JORNALÍSTICA:
Edição final: Noêmia Félix da Silva e Gabriella Serrano
Redação da reportagem: Victoria Vieira da Silva
Repórteres: Lorenzo Barreto e Gustavo Camargo
Fotografias: Fernando Lima/Reproduções da Agência Brasil/Joédson Alves/Câmara dos Deputados/Pablo Valadares/REUTERS/Nacho Doce
Supervisão Geral: Noêmia Félix da Silva (Jornalismo Científico e Ambiental) e Carolina Zafino (Ciberjornalismo).
*O conteúdo produzido e publicado no Impressões é resultado de um processo de aprendizado pedagógico do curso de Jornalismo da PUC Goiás dos alunos nas disciplinas de Jornalismo Científico e Ambiental e Ciberjornalismo.