domingo, 22 de junho de 2025
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Depois da Tempestade: o luto que ficou

O Brasil chorou em silêncio. No auge da pandemia, a morte bateu à porta sem dar tempo para adeus. Sem abraços, sem cerimônias, sem ritos. Ficaram as memórias suspensas e um luto coletivo que ainda busca formas de existir

Por Fernando Henrique, Marianna Moreira e Sofia de Araújo

Supervisão por Professora Gabriella Luccianni

Os silêncios ainda ecoam. Era para ser só mais um café da tarde na varanda da dona Maria. Era para a cadeira da Lílian estar ocupada, como sempre esteve. Era para a rotina seguir com conversas, risos e o cheiro de bolo no ar. Mas, desde dezembro de 2020, uma cadeira permanece vazia. E, com ela, um vazio que nenhuma tarde ensolarada conseguiu preencher. A pandemia de COVID-19 não levou apenas pessoas. Levou rituais, tradições, abraços, despedidas. Levou o tempo de se preparar para o adeus. Para milhares de famílias brasileiras, como a da Maria Cândida da Silva, da Carmen Lúcia da Silva e da Izabel Cristina Araújo, a morte veio como um raio: rápida, silenciosa e sem permitir cerimônia.

Maria Cândida perdeu a filha, companheira diária de café e de vida. Em seu relato, o tom é sereno, mas as pausas entre as palavras revelam um abismo de dor.

“Ela era muito apegada a mim. Foi difícil porque não teve o velório que ela pensava. Não teve a despedida da família. Não pudemos nos aproximar. Eu custei a me acostumar.”

A ausência de rituais de despedida ainda pesa. Sem enterro tradicional, sem amigos por perto, sem flores, sem o último toque. Apenas a certeza da ausência dura, fria, repentina. Um luto sem corpo, sem voz, sem chão. Carmen Lúcia, irmã de Lília, ainda guarda a sensação de que tudo foi um pesadelo mal resolvido.

“Parece que a Lília está viajando. Às vezes acho que ela chega. Mas de repente me lembro… ela morreu. E morreu sem que a gente a visse no hospital, sem velório, sem nada. É muito brutal.”

O luto, dessa forma, se transformou em um trauma suspenso. Quando não há velório, caixão, toque, nem cerimônia, fica difícil acreditar que a morte aconteceu. E, como ela mesma diz, “foi arrancado da gente”.

“A casa da minha mãe era o ponto de encontro. Agora, sentar naquele mesmo lugar já não é a mesma coisa.”

O luto coletivo vivido na pandemia foi um acontecimento sem precedentes. Segundo o Ministério da Saúde, mais de 700 mil pessoas morreram de COVID-19 no Brasil. Mas e os que ficaram? A psicóloga Cleide Neves, especialista em perdas e luto, explica que o processo pandêmico amplificou a dor.

“O luto coletivo é diferente porque envolve uma memória social. Você não está sofrendo sozinho: toda a sociedade está fragilizada. Porém, o Brasil não parou para chorar junto. O luto foi vivido individualmente, em casa, no silêncio das redes sociais.”

A ausência de políticas públicas de acolhimento e a falta de empatia coletiva agravaram um cenário onde cada um sofreu o luto à sua maneira muitos calados, isolados, em choque. Sem acesso a psicólogos ou grupos de apoio, as famílias buscaram refúgio na fé e nos vínculos que restaram. Para Maria Cândida, a fé em Deus se fortaleceu. “Aumentou muito minha fé. Tive apoio da minha família, que é pequena, mas unida.”

Já Carmen sentiu o peso da solidão imposta até mesmo pelo medo dos vizinhos.

“As pessoas se afastaram da gente. Parecia que tinham medo de falar conosco. Foi um certo desprezo, talvez por medo, mas foi dolorido. Mesmo assim, superamos.”

Entre perdas e cicatrizes, surgiram novas formas de manter viva a memória dos que partiram. Fotos nos móveis, objetos guardados, receitas que seguem sendo feitas “como ela fazia”, orações em nome do ente querido. A tradição foi reinventada, no silêncio de cada casa.

“O que eu deixaria de mensagem para quem está enfrentando o luto?”, pergunta Carmen. “Que vai doer, sim. Mas a gente nasce, cresce e morre. A saudade fica. Mas a gente conforma. Nunca esquece, mas aprende a continuar.”

Izabel Cristina, sobrinha da vítima, acredita que a pandemia trouxe lições mesmo entre a dor.

“As pessoas aprenderam a valorizar mais a família, os momentos. A dar mais importância pro que realmente importa.”

É um aprendizado duro. Mas necessário. O Brasil precisa falar sobre luto. Precisa construir espaços de memória, de acolhimento, de escuta. Porque a dor só se transforma em afeto quando compartilhada. Uma cadeira vazia, um país em silêncio. A pandemia acabou oficialmente. As máscaras caíram, os abraços voltaram, os shoppings se encheram. Mas, em muitas casas, a ausência ainda tem forma. Tem nome. Tem dia. Tem cheiro. O Brasil precisa de um memorial coletivo. Um ritual tardio. Uma narrativa que acolha e reconheça os que foram e os que ficaram. Porque, depois da tempestade, o luto ficou. E merece ser contado.

O luto na visão do especialista

A definição do dicionário para a palavra “luto” diz: “Sentimento de dor, pesar ou tristeza pela morte de alguém”. “A dor não passa, ela só se torna um pouco mais leve com o passar do tempo”. É o que se escuta de uma pessoa quando perguntada sobre como ela está tratando a perda de um parente próximo.

Porém, só pode definir o quão difícil é esse momento quem passa e sofre por cada fase dele. Afinal, o luto na verdade é bem mais que isso. Se não for tratado corretamente, o luto pode significar traumas, sequelas, e por diversas vezes pode se tornar depressão afetando intensamente a vida de quem passa por ele.

De acordo com a psicóloga clínica, Cleide Neves, o conceito dado ao luto na psicologia é “a resposta natural a perda de algo ou alguém significativo”. Ou seja, além de inevitável, o luto afeta cada pessoa de uma forma particular, podendo impactar de forma emocionalmente, física, mentalmente e até mesmo espiritualmente.

Cleide traz um conceito da psicologia que diz que esse processo é dividido em cinco fases: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação. Quanto as sequelas deixadas pelo luto, a principal delas é a depressão prolongada, que pode aparecer caso o luto não seja tratado com a seriedade necessária. “Infelizmente, existem pessoas que são ignoradas na fase da depressão, e se ela não busca um profissional isso pode se tornar ainda mais complicado.”

De acordo com dados divulgados no dia 2 de Março de 2022 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou em 25% apenas no primeiro ano de pandemia da COVID-19. Desde então, a discussão sobre saúde mental aumentou no Brasil, visto que, segundo a OMS, o nosso país ocupa hoje a quinta posição no ranking mundial da depressão. “Precisamos enfrentar esse processo pandêmico para que as pessoas se olhassem. Após a pandemia os consultórios foram olhados de forma mais atenciosa”, diz a doutora.

Como tratar o luto?

De acordo com pesquisa do jornal Estado de Minas, o palavra “luto” é pesquisada, em média 368 mil vezes por mês, somando mais de 4 milhões de vezes por ano. As pessoas buscam por soluções alternativas para tratar desse problema, já que muitas vezes a temática da morte é tratada como um tabu na sociedade.

A principal forma de superar esse problema é relativamente simples: expressar seus sentimentos. Nesse caso, a psicoterapia vem para ser uma alternativa eficaz para ajudar quem precisa, esse processo ressignifica o sentido da perda e reconstrói a vida do enlutado, e faz com que ele consiga seguir sua vida com novas tradições, mas sem esquecer de quem se foi.

A psicologia diz que o paciente precisa entender que é necessário enfrentar as fases do luto para chegar ao processo da aceitação, pra isso é preciso validar seus sentimentos, ao invés de escondê-los. “Esse paciente precisa querer, precisa compreender que é importante pra ele estar no processo terapêutico, pra que ele veja a importância de seguir a diante”, afirma a psicóloga Cleide Neves.

A cultura brasileira do “tá tudo bem” é extremamente prejudicial, e o aumento de casos de problemas como depressão e ansiedade evidencia isso de maneira clara. A repentina preocupação da sociedade quanto a esses problemas não é à toa. Portanto, se preocupe, busque ajuda, e ajude o próximo sempre que possível. A saúde mental é muito importante.

A pandemia que parou o mundo e mudou vidas

Foram meses que pareciam anos. Quando a pandemia da Covid-19 chegou ao Brasil em março de 2020, ninguém imaginava o tamanho do impacto que ela teria nas nossas vidas. Em poucos dias, cidades inteiras silenciaram. O mundo parou ou melhor, foi forçado a desacelerar. As ruas ficaram vazias, os hospitais lotados. As rotinas, os afetos e as certezas também foram infectadas.

No Brasil, foram mais de 700 mil mortes confirmadas por Covid-19 até 2023, segundo o Ministério da Saúde. Um número que carrega muito mais do que estatísticas: são mães, pais, filhos, avós, amigos. Histórias interrompidas. Para cada número, uma cadeira vazia à mesa.

A vacinação em massa foi um divisor de águas. Apesar de atrasos, campanhas de desinformação e hesitação vacinal, a ciência venceu. As vacinas salvaram milhões de vidas e foram responsáveis por reduzir drasticamente os casos graves e os óbitos. Em 2021, o país chegou a vacinar mais de 2 milhões de pessoas por dia, em um esforço coletivo que uniu profissionais da saúde, instituições públicas e a própria população.

Mas os impactos da pandemia vão muito além dos dados epidemiológicos. A Covid-19 foi também um evento traumático coletivo. Ela bagunçou o relógio emocional do mundo e, para muitos, deixou sequelas invisíveis: o luto sem despedida, a ansiedade, a solidão, o medo constante. Não há vacina para o vazio que a ausência de alguém amado deixa. E isso é algo que os números não mostram, mas que pulsa nos relatos de quem ficou.

A pandemia também acelerou transformações. O trabalho remoto virou realidade para alguns, enquanto outros perderam suas fontes de renda. A escola foi para a tela do celular. As relações interpessoais passaram a depender da internet. As festas foram substituídas por lives. O toque tão essencial para o brasileiro virou risco.

Além disso, o vírus escancarou as desigualdades sociais no Brasil. Enquanto algumas pessoas puderam se isolar com conforto e segurança, milhões viveram o confinamento em casas pequenas, sem saneamento básico, dividindo cômodos com várias pessoas. Trabalhadores informais, moradores de rua, populações indígenas e quilombolas foram duramente atingidos muitos sem acesso à testagem, atendimento ou mesmo informação confiável.

Mesmo após a fase mais crítica, os efeitos persistem. O chamado “covid longa” atinge uma parcela significativa de quem foi infectado, causando fadiga, falta de ar, dificuldades cognitivas e outras sequelas que impactam diretamente a qualidade de vida. Além disso, o trauma coletivo da pandemia ainda está sendo processado por muitas pessoas especialmente aquelas que perderam familiares ou que estiveram na linha de frente, como os profissionais da saúde.

A imprensa teve um papel crucial nesse período. Foi fonte de orientação, denúncia, acolhimento e resistência contra a desinformação. Em um cenário de crise sanitária, política e social, o jornalismo voltou a ser um serviço essencial à sociedade.

A pandemia mudou o mundo. E, talvez, tenha mudado também a forma como olhamos para a vida. A valorização do cotidiano, do abraço, da saúde, da coletividade tudo isso foi ressignificado. Se o coronavírus nos trouxe dor, também nos deixou a lição de que somos, mais do que nunca, interdependentes.