quarta-feira, 23 de outubro de 2024
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Marco Temporal pode se tornar o maior desafio da atualidade para povos indígenas

Perspectiva está em discussão no âmbito legislativo e judiciário. Em 2009, decisão do ministro Ayres Brito no julgamento da demarcação da Raposa Serra do Sol seguiu a ideia do marco temporal.

Imagem: Protesto contra o Marco Temporal. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Os direitos e garantias dos povos indígenas previstos não foram suficientes para garantir segurança nas aldeias. Uma das situações mais desafiadoras e geradoras de violência nas relações com os não-indígenas é o uso da terra, assunto retomado pelo Marco Temporal (PL 490/07), um projeto de lei que visa regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal. A iniciativa propõe a criação um novo sistema de demarcação de terras indígenas e vem sendo bastante debatido nos últimos meses.

Recentemente, o texto-base do projeto de lei foi aprovado em primeira votação na Câmara dos Deputados por 283 votos e encaminhado ao Senado. De iniciativa do ex-deputado federal Homero Pereira, à época filiado ao PR-MT (hoje Partido Liberal), a proposta tenta transferir do Poder Executivo para o Legislativo a competência para demarcar terras indígenas.

Com informações do Site da Câmara dos Deputados.

Ao mesmo tempo, tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) um recurso extraordinário, já em fase de julgamento, que discute a reintegração de posse requerida pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma) de área declarada como de tradicional ocupação indígena do povo Xokleng, localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás.

Na ação de repercussão geral (ultrapassa os interesses subjetivos da causa e auxiliará para a resolução de conflitos semelhantes), se discute se a data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, deve ser adotada como marco temporal para definição da ocupação das terras pelos indígenas. O placar atual é de dois votos a um, sendo contrários os ministros Alexandre de Moraes e Edson Fachin (relator) e favorável o ministro Nunes Marques. Até o fechamento da edição da reportagem o processo seguia em vistas para o ministro André Mendonça.

Linha temporal do Marco Temporal em âmbito jurídico e político

No âmbito político, o que se observa é uma pressão da bancada ruralista para passar por cima do julgamento no Supremo e aprovar rapidamente o PL. Por trás desse fato, há interesses e jogos políticos e econômicos rolando.

“Há um lobby político contra os direitos dos povos indígenas. Setores do agronegócio, da mineração têm feito esse lobby para que haja um retrocesso dos direitos. Nós estamos sob uma ameaça constante de bancadas ligadas a essas áreas e outros setores econômicos”, relata o advogado Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pertencente ao povo Tuxá da Bahia.

Segundo a ex-procuradora geral da República, Raquel Dodge, a aprovação do Marco Temporal causará uma grande insegurança jurídica para os povos originários. Dodge ressalta que os direitos originários sobre as terras antecedem a promulgação da Constituição, por meio da qual se reconhecem os direitos pertencentes aos povos.

“Esse projeto irá implicar na reversão do reconhecimento dos atos administrativos que reconhecem essas terras. Haverá uma corrida para que os procedimentos demarcatórios sejam reabertos e uma nova investigação seja feita, com base em uma prova impossível, que nunca foi exigida pelo legislador e nem pelo constituinte a respeito dos indígenas estarem habitando aquela terra na data da promulgação da Constituição, é uma prova diabólica”, explica Dodge.

Raquel Dodge, ex-procuradora geral da República | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Para a professora e artista visual Mirna Kambeba, pertencente ao povo Kambeba Omágua do Amazonas, o PL 490 acarretará uma série de consequências para os povos originários. “O Marco Temporal parte de um princípio que a colonização chega mais uma vez, pois desconsidera que o Brasil é um país indígena. Ele assassina a diversidade que são os povos, mais uma vez reforçando essa colonização. É um projeto de morte para os povos indígenas. Se estamos em uma grande discussão de demarcação de terra, o marco desmobiliza e destrói lutas que têm sido construídas. Então o Marco Temporal realmente é um PL da morte”, enfatiza.

Mirna Kambeba protesta contra PL 490 | Foto: reprodução/arquivo pessoal

A proposta do marco quer refazer o método de demarcação das terras indígenas, sendo consideradas apenas as já reivindicadas pelos povos originários antes da promulgação da Constituição de 1988. O critério foi utilizado em 2009 pelo então ministro do STF, Ayres Britto, no julgamento da demarcação do território indígena Raposa Serra do Sol. A decisão judicial abriu precedente que colocou em risco o reconhecimento de terras posterior à promulgação da Constituição.

Segundo o atual relator do projeto legislativo, deputado federal Arthur Maia, o Marco Temporal vai mudar a tese atual, que considera todo o território brasileiro como indígena e desconsidera a formação do Estado, na qual houve uma mistura da cultura de diversos povos. A nova tese, chamada por ele de fato indígena, vai reconhecer os povos que estavam nos territórios na época de promulgação da Constituição, pois, conforme o deputado, “eles merecem”. Em sua fala, durante a votação na Câmara, o parlamentar disse que o projeto dará mais segurança jurídica e trará paz no campo, além de estabelecer um limite, já que quase 14% do território está demarcado.

Fernanda Borges, professora de direito constitucional da PUC Goiás, explica sobre os direitos indígenas

A aprovação do marco vai afetar demarcações feitas após a Constituição, as que estão em andamento, as futuras e as passarão para as mãos do Legislativo. De acordo com informações da Agência Câmara de Notícias, mais de 80 casos e 300 processos estão pendentes. 

Após a promulgação da Constituição, a expectativa era que os territórios indígenas fossem demarcados nos próximos anos, mas o que se demonstrou na prática foi um processo moroso e sem solução. Em abril desse ano, por exemplo, foi demarcado o território do povo Avá-Canoeiro, localizado no norte de Goiás. Mesmo após tantos anos de lutas, o Marco Temporal coloca tudo isso em perigo, já que sendo reconhecido após o ano de 1988, eles precisarão provar para a justiça que o território é deles anteriormente.

Entre os apoiadores da aprovação do Marco Temporal, há o objetivo de evitar novas demarcações de terras e fazer com que áreas aprovadas nos últimos anos possam voltar a ser espaços voltados ao agronegócio.

“O projeto busca exatamente isto: evitar os conflitos no Brasil. Busca segurança jurídica, busca transparência, busca clareza na demarcação de novas terras indígenas. Nós não podemos ter um País absolutamente vulnerável a um laudo antropológico de um funcionário da Funai para poder, de repente, fazer com que uma cidade possa virar uma nova reserva indígena”, destacou o deputado federal Fábio Garcia (União/MT), vice-líder da bancada ruralista, durante a primeira do votação do PL na Câmara dos Deputados, em contrária percepção à Raquel Dodge.

Demarcação da terra

O artigo 231 da Constituição traz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. A implantação prática do artigo não ocorreu e o descumprimento legal intensifica as disputas pela posse e uso das terras. A situação é agravada pela forte presença de posseiros, madeireiros e garimpeiros, associada à omissão do Estado, o que gera doenças, miséria, insegurança alimentar e desnutrição, abusos e crimes contra homens, mulheres, idosos, jovens e crianças indígenas.

A demarcação de uma terra indígena é iniciada pela Funai, de acordo com Joelma Wapichana, do povo Wapichana de Roraima, primeira mulher indígena advogada e atual presidente da fundação. Ela explica que o reconhecimento das terras indígenas acontece através do procedimento de regularização fundiária, fazendo a identificação, a delimitação e preparando todos os processos.

“Temos como base os princípios constitucionais que garantem os direitos originários, o princípio da imprescritibilidade, da indisponibilidade, da inalienabilidade e faz isso porque é o principal direito que dá condições para que os povos indígenas continuem a viver como um povo que tem sua cultura específica, sua forma de se organizar, suas línguas, diversidade cultural, que vem da relação especial que tem-se com a terra”, destaca Wapichana.

Segundo dados da Funai, até 2021 havia 761 terras indígenas em diferentes estágios do processo demarcatório. Os estágios de uma demarcação são os seguintes:

  • Em estudo: na qual há uma investigação antropológica do local;
  • Delimitada: fase em que há a conclusão do estudo e foi aprovada pelo presidente da Funai;
  • Declarada: quando é encaminhado o processo para o Ministro da Justiça que decidirá sobre o tema e os limites e demarcações;
  • Homologada: fase de publicação dos limites através de Decreto Presidencial;
  • Regularizada: fase em que há o registro no cartório da área homologada.

Na conhecida Amazônia Legal, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), são cerca de 424 áreas passando pelo processo demarcatório, a maior parte sofre com o aumento do desmatamento e os garimpos ilegais, que contaminam rios, mesmo dentro de áreas reservadas, como o recente caso Yanomami. O desmatamento realizado ilegalmente tem dois destinos, primeiro a extração de recursos naturais da floresta e segundo abrir novas áreas para plantio e pecuária, e é aí que entram os interesses políticos e econômicos por trás do projeto de lei.

A relação indígena com a terra é diferente do pensamento que a maior parte do povo tem sobre essa situação. Para eles é algo cultural, uma ligação emocional com o lugar em que o seu povo foi originado. Há um respeito pela natureza, desde rios, árvores, animais e a própria terra. Segundo um relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2012, os indígenas são “os melhores guardiões das florestas”. De acordo com o documento, aproximadamente metade da área ainda preservada da Floresta Amazônica se encontra dentro de áreas indígenas, resultado esse que comprova o fato da ligação de respeito com o lugar demonstrado pelos povos.

O marco temporal não põe em risco apenas esses grupos, mas o próprio meio ambiente. “A utilização de terceiros interessados, em privatizar essas terras poderá levar ao desmatamento na Amazônia e ao aumento das mudanças climáticas”, complementa Raquel Dodge,.

Segundo a professora Mirna Kambeba, o território para os povos originários é algo vital. “A importância do território para nós é a importância da nossa vida. É a terra que nos alimenta, que nos protege, o lugar onde vivemos, onde tem um conhecimento ancestral, a criação e o desenvolvimento de uma vida indígena, de uma comunidade, dos saberes dos mais velhos. Então, o território tem uma importância fundamental”, enfatiza.

A professora Fernanda Borges reforça que: “a terra para os povos indígenas é algo para a própria existência, e para a vida deles. Estar no seu território com as suas tradições e crenças, a terra é a própria condição para que ele possa existir. Se eles não têm o seu território, você está exterminando os povos indígenas, excluindo-os de seus direitos”.

Esse novo processo de demarcação territorial que está sendo votado demonstra uma realidade negativa que os indígenas vivem na sociedade. Primeiramente, há uma falta de sensibilidade por boa parte da população brasileira frente aos desafios que os povos precisam enfrentar e segundo, há uma falta de representatividade. No ano de 2022 apenas cinco indígenas foram eleitos para a Câmara dos Deputados, ou cerca de 0,9% do total. Na prática, essa minoria resulta em outros grupos da sociedade decidindo o que é melhor para eles, como a bancada ruralista que apresenta disputas de interesses diretos. Diante disto, é necessário que haja uma maior presença política dos povos, para que pautas como o Marco Temporal não corram o risco de serem aprovadas.

Crimes

No ano de 2021 foram registrados 322 crimes, dentre eles homicídios, ameaças, lesões corporais, abuso sexual, entre outros. Um dos fatores que pode explicar o aumento é o fato do ex-presidente Jair Bolsonaro não ter reconhecido nenhuma demarcação de terras aos povos originários durante o mandato e nem ter melhorado as condições de vida e segurança deles.

A falta de demarcação de terras e até o novo método proposto pelo Marco Temporal tendem a piorar a situação dos povos indígenas. Quando demarcada, a terra fica protegida, já que ninguém tem a autorização para usá-la para outros fins. Quando há um território destinado a certo povo, o Governo Federal deve continuar com a missão de protegê-la.

Nesse sentido, a demarcação visa a proteção dos povos e tende a diminuir os conflitos por terra, diminuindo consequentemente a criminalidade nas áreas homologadas, o que não diminui a importância de políticas públicas voltadas à segurança dos povos originários.

De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib), a crise humanitária Yanomami chegou a ser denunciada mais de 20 vezes para as autoridades durante o governo Bolsonaro. Apenas em 2022, mais de 100 crianças Yanomami morreram na terra, enquanto isso havia uma inércia por parte do ex-presidente ao avanço dos garimpeiros e madeireiros. Segundo o ministro da justiça, Flávio Dino, durante uma entrevista coletiva realizada em janeiro de 2023 a respeito do drama humanitário, no Palácio da Justiça, afirma que houve “uma omissão da alta administração federal”.

Segundo o relatório do Conselho Indigenista Missionário, houve mais de 200 casos de invasões a essas áreas em 2021. Isto indica que a garantia do território por si só não garante segurança, mas demarcar territórios deve ser um ponto inicial na busca da cidadania e da paz para os povos.

Imagem: infográfico dos casos de violências sofridas por indígenas em 2021.

EQUIPE DE PRODUÇÃO JORNALÍSTICA:

Edição final: Carolina Zafino e Gabriella Serrano

Redação da reportagem: Gabriel Antônio, Diego Almeida, Henrique Sant’Anna, João Vitor Barrozo e Yan Rezende.

Repórteres: Diego Almeida e João Vitor Barrozo.

Fotografias: Rafael Villela

Supervisão Geral: Noêmia Félix da Silva (Jornalismo Científico e Ambiental) e Carolina Zafino (Ciberjornalismo).

*O conteúdo produzido e publicado no Impressões é resultado de um processo de aprendizado pedagógico do curso de Jornalismo da PUC Goiás dos alunos nas disciplinas de Jornalismo Científico e Ambiental e Ciberjornalismo.