quarta-feira, 23 de outubro de 2024
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De protagonistas a coadjuvantes: o apagamento dos povos indígenas em Goiás

Número de indígenas no país tem previsão de aumento, segundo IBGE. Em Goiás, apenas três grupos - Tapuios, Iny-Karajá e Avá-Canoeiro resistem.

Povos indígenas Tapuias de Goiás. / Foto: Eunice Pirkodi

Com o início da colonização portuguesa, o contato com não indígenas gerou perdas populacionais significativas, devido a conflitos, epidemias e escravização. Em meados de 1500, segundo a historiografia brasileira, havia cerca de cinco milhões de indígenas em solo brasileiro, agrupados em mais de mil povos distintos. Aqueles que sobreviveram enfrentam o processo de apagamento e silenciamento da identidade cultural indígena, resistem e tentam ainda hoje recuperar a visibilidade e o protagonismo no país.

O Censo Demográfico, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), incluiu a população indígena em 1991. Distribuída por todos os estados da federação, a população que era de 294.131 pessoas saltou, em 2000, para 734 mil. Em 2010, os números registraram 896.917 indígenas, dos quais 572.083 viviam na zona rural e 324.834 habitavam as zonas urbanas. 

Os dados do Censo 2022 ainda não foram divulgados, mas informações preliminares apontam um crescimento da população indígena para 1.652.876 pessoas. Os estudos demográficos são importantes para contribuir com a elaboração de políticas públicas em prol desses povos.

A região que hoje pertence ao Estado de Goiás é povoada predominantemente pelos indígenas Avas-Canoeiros e os Tapuias. De acordo com o IBGE, o estado abrigava 14.110 indígenas em 2000. Em 2010, o número diminuiu para 8.533 indivíduos, representando uma queda populacional de mais de 40%.

Atualmente vivem em Goiás apenas três etnias indígenas: os Iny-Karajá, no município de Aruanã, com 305 pessoas; os Avá-Canoeiro, entre os municípios de Minaçu e Colinas do Sul, com 9 pessoas; e o povo Tapuio, nos municípios de Rubiataba e Nova América, com aproximadamente 222 pessoas. Esses povos remanescentes resistiram a décadas de extermínio em processos de colonização, aldeamentos, ações missionárias, frentes de expansão agropastoris e vivenciaram conflituosos processos que resultaram em grande perda populacional.

A série histórica do Censo do IBGE revela que o processo de apagamento dos povos indígenas em Goiás está em uma crescente, com diminuição drástica da população, mas o apagamento não é só isso, é também um processo que ocorre quando um grupo étnico, comunidade ou cultura é marginalizado, desvalorizado ou suprimido, resultando na perda de identidade, conhecimento, tradições e formas de expressão. O contexto demográfico mostra a perda de protagonismo dos povos indígenas, lançados a posição de coadjuvante no ambiente político do país nas últimas décadas.

O apagamento cruza também com um imenso preconceito. Os povos originários sofrem diariamente com os estereótipos do indígena e da sua cultura, de acordo com Rafaella Coxini, pertencente ao povo Karajá. “Nós sofremos o preconceito pela questão do estereótipo, ou por aparentar ser aquele indígena que está nos livros de história ou aquele indígena que realmente não parece nada com os indígenas que estão no livro de história”, reflete.

Rafaella discute ainda a dificuldade de a sociedade não discriminar os indígenas que têm ocupado novos espaços e conquistado visibilidade. “Tem a discriminação do indígena que está na faculdade, porque ele está naquele ambiente que ele não pertence, o indígena que trabalha, ou que tem seus bens materiais, ele é discriminado porque o indígena não pode ocupar esse espaço de trabalho, o indígena não pode ocupar esse espaço capitalista de ter os seus bens”, pontua Rafaella.

A jornalista Narelly Batista desenvolve projetos de comunicação e de produção cultural junto a povos indígenas das comunidades tradicionais de Goiás desde 2013 e discute sobre a importância da política pública que garanta materiais específicos sobre os povos indígenas dentro das escolas, mas expõe certa dificuldade. “Hoje nas escolas a gente sabe que quando se fala de povos indígenas é uma coisa bem folclórica, como um ‘indiozinho de cuiazinha’, crianças que se pintam no Dia dos Povos Indígenas, completamente distante do que de fato são os povos indígenas”, frisa.

Eunice Pirkodi, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), indígena do povo Tapuia, enfatiza a importância de conhecer a história dos povos originários, enquanto brasileiros e goianos, uma vez que “todo brasileiro também tem sangue indígena no seu sangue”.

Pertencimento

O apagamento acarreta o enfraquecimento do senso de pertencimento e identidade das pessoas. De acordo com estudo realizado pela USP em abril de 2023, pertencimento é aquela percepção de alguém fazer parte de uma comunidade, família, grupo ou nação.  Segundo os pesquisadores, os seres humanos têm necessidade de ter e manter um relacionamento duradouro, estável e significativo com um grupo de pessoas. As relações são importantes porque moldam o comportamento, pensamento e emoções, trazem vantagens evolutivas e beneficiam a sobrevivência e a reprodução.

Para os indígenas, a terra é como a mãe, aquela que nutre, dá energia e está presente. O território indígena é o lugar de plantar e colher, da nascente, dos rios e carrega a força dos ancestrais. A conexão dos povos originários com o território é profunda e forte.

Foto: Genilson Guajajara

Rafaella Coxini enfatiza que a comunidade é fortalecida através do território e da língua materna, dos rituais, dos cantos, das pinturas e grafismos, que expressam a liberdade de serem quem são. “É através do dia a dia, da nossa vivência, que nós diariamente fortalecemos quem somos”, pontua.

Tudo que o povo precisa está no território ao qual pertence e o meio ambiente faz parte da sobrevivência indígena, segundo Pirkodi. “O território do povo é o povo por completo”, frisa.

Saúde

A Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) é responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) no Sistema Único de Saúde (SUS). As secretarias estaduais e municipais de Saúde atuam de forma complementar na execução das iniciativas.

De acordo com o Ministério da Saúde, a Sesai conta com mais de 22 mil profissionais de saúde, sendo 52% indígenas, e atende a mais de 762 mil aldeados em todo o Brasil. A entidade promove a atenção primária à saúde e ações de saneamento.

Estão em funcionamento 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) em todo o país, mas apenas um deles está em Goiás. Os limites dos Dseis não coincidem com os limites interestaduais, mas sim por área territorial, baseando-se na ocupação geográfica das comunidades indígenas.

Mapa ilustrativo da localização dos Dseis no Brasil. / Fonte: Reprodução Ministério da Saúde

O desamparo do Governo com os povos indígenas na área da saúde pode ser desenhado de diferentes formas, contribuindo para o apagamento. Para o vice-cacique Welligton Tapuia, é desumana a forma como os indígenas são tratados frente à saúde pública. Os médicos não têm acesso às aldeias, da mesma forma que os indígenas não têm acesso aos médicos. Aqueles poucos que chegam às unidades de saúde improvisadas dentro dos povoados, não têm onde ficar, e acabam indo embora antes de atender todos os doentes. Faltam equipamentos, alojamentos e remédio. “É preciso uma reestruturação da saúde indígena, não há verbas para exames e tratamentos e nas farmácias indígenas só tem chegado medicamentos vencidos”, expôs o vice-cacique dos Tapuias.

Entrevista com o vice-cacique dos Tapuias, Welligton Vieira Brandão.

“A falta de apoio do governo hoje desequilibra todo o estado emocional das comunidades indígenas, principalmente das lideranças, uma vez que você cobra seus direitos e não é atendido pelo governo. Hoje a gente tem reivindicado muito dentro das instâncias federais e, infelizmente, a maioria das respostas é um não pra gente”, enfatiza Welligton.

Para as lideranças indígenas, fica o sentimento de dor e desespero, uma vez que passam a ocupar papéis de coadjuvantes em sua própria história e cultura. “A gente faz esse enfrentamento com muita garra e dedicação. Uma vez que nós não podemos deixar de lutar, certos na esperança de que nossas comunidades possam perseverar e crescer muito no futuro com espaço e liberdade dentro dos nossos territórios”, finaliza o vice-cacique Tapuio.

Entrevista com o vice-cacique dos Tapuias, Welligton Vieira Brandão.

Demarcação

Os indígenas vivem e trabalham com a preservação das florestas. A necessidade de demarcação das terras surge como um meio de protegê-los do apagamento, causado por ações de latifundiários, mineradores, madeireiros, entre outros exploradores. No início deste ano, a colaboração entre as forças de segurança do estado de Goiás e da União, com a criação do Batalhão Ambiental da Polícia Militar (PM), encontraram diversos pontos de garimpo, chamado “garimpo de balsa”. Por alguns dias, os garimpeiros ilegais vivem a bordo de balsas metálicas, com cerca de 25 metros quadrados, que eles mesmos fabricam. Ancoradas em regiões de difícil acesso, cobertas por matas ou cercadas de pedras, as balsas podem se mover rápida e furtivamente, enquanto os garimpeiros lavam cascalho para buscar por minérios. Ali, garimpeiros usam o mercúrio (metal altamente poluente) para buscar ouro e, consequentemente, contaminam rios e lençóis freáticos.

Segundo os estudos da antropóloga Marlene Castro, as demarcações são fundamentais para garantir o habitat dos povos originários. Antigamente eles não necessitavam de demarcações, pois tinham sua própria concepção de limites territoriais-geográficos e das áreas de existência material e cultural.

Marlene explica que as demarcações de terras indígenas são fruto das políticas de aldeamentos que eram uma prática de aldear, concentrar ou reunir diferentes grupos indígenas em um mesmo local, sob a direção de missionários ou militares, iniciada no Brasil, em meados do século XVI e que tinham como objetivos, de início, a cristianização dos indígenas, e mais tarde de sua civilização no âmbito da política indígena de Rondon.

“O território é para os povos nativos o suporte da vida social e está diretamente ligado ao sistema de conhecimento e de crenças, representando o chão cultural onde vivem e repousam seus antepassados. Para a manutenção desse sistema de conhecimento e crenças, os povos indígenas precisam de um território representado pelos espaços da aldeia, das roças e da mata”, reforça Marlene.

Demarcar os territórios indígenas é uma necessidade, no sentido de assegurar a proteção dos limites demarcados e impedir invasões, além de assegurar a continuidade desses povos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou, em abril de 2023, a demarcação de um território indígena em Goiás, localizado nos municípios de Minaçu e Colinas do Sul. A terra de 31,4 mil hectares é lar dos Avá-Canoeiros, conforme dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Há essa garantia somente para a comunidade Avá-Canoeiro, já os povos Tapuia e Karajá continuam lutando pela demarcação dos territórios.

Mapa ilustrativo da localização de terras indígenas no Estado de Goiás. Foto: Reprodução Internet