Por Guilherme Ferreira
A pesquisadora e jornalista Ivone Ananias dos Santos Rocha tem vasta experiência na área da educomunicação. Doutoranda em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Políticas Públicas e especialista em Mídias Digitais, ela integra o grupo de estudos e pesquisas em Paulo Freire ComFreire e a Associação Brasileira de Profissionais e Pesquisadores em Educomunicação (ABPEducom). No dia 25 de abril, às 10 horas, Ivone Rocha será uma das expositoras da mesa redonda “Ensinar a ensinar: a alfabetização midiática nos currículos de jornalismo”, durante o Encontro Nacional de Ensino de Jornalismo (ENEJor) da Abej. Em entrevista à Agência Impressões, ela fala sobre a importância da educação midiática para a sociedade, aponta a falta de políticas públicas sobre o tema e conta sobre sua participação no projeto social Memórias em Rede, que leva jornalismo para as escolas públicas de Santos, em São Paulo, mostrando aos professores como o jornalismo pode estimular a participação do aluno.
Impressões: Qual é a importância da educação midiática para a sociedade?
Ivone: Diante das novas mídias e desse cenário de abundância de informação, dos grandes volumes de dados que são disponibilizados pela internet, a educação midiática se torna mais importante. O fato da inteligência artificial estar fazendo, cada vez mais, parte do nosso dia a dia, interfere e tem uma relação próxima com a educação midiática para a sociedade. A sociedade precisa estar educada, midiaticamente, para conviver e comunicar nas novas mídias. Norberto Bobbio, um filósofo político que também se destaca na ciência política afirma que, para adquirirmos competência cívica, precisamos ter o direito de nos manifestar, inclusive sobre questões políticas e sobre pontos de vista que tenhamos, seja fazendo críticas ao governo, à sociedade, aos grupos, à ordem socioeconômica, e que é pela liberdade de expressão e pela diversificação das fontes de informação que as pessoas devem, e podem, influenciar as decisões, e ações, do governo e da sociedade como um todo.
André Lemos, da Universidade Federal da Bahia, diz que “as plataformas digitais funcionam pelo monitoramento e controle das ações humanas em diversos domínios pelo processo de dataficação com fins de monetização. Esse novo regime sociotécnico pressupõe, portanto, uma ampla coleta de dados que se desenvolve nas relações sociais, no domínio da natureza e no controle sobre o conhecimento”. Tudo isso mostra que a sociedade tem, ao seu dispor, mas seguindo as regras destas plataformas, um mundo de informação a nossa frente. Como que a gente vai lidar com esse mundo de informação? Como é que iremos trabalhar essa educação midiática? Como é que nós vamos trabalhar dentro dessas plataformas ou a partir delas? Nos comunicando com as pessoas, influenciando e formando opiniões. Se não temos uma educação devida para isso, então é daí que se mostra a importância da educação midiática para a sociedade.
Impressões: O título da sua pesquisa de doutorado é “A Contribuição do Jornalismo na formação de estudantes da escola básica”. Até agora, quais são os resultados da sua pesquisa?
Ivone: Como não houve a conclusão da pesquisa, não há resultados efetivos. Os resultados disponíveis até o momento foram desenvolvidos durante 5 anos no projeto Memórias em Rede, na cidade de Santos, em São Paulo. Levando o jornalismo dentro da escola, e mostrando aos professores como que eles podem se beneficiar do jornalismo no estímulo e na participação do aluno. O aluno jovem é pouco estimulado para o ensino, para o processo de aprendizado, e tanto o projeto quanto a pesquisa vão nessa perspectiva. Como é que o Jornalismo pode ajudar o jovem a ter esse estímulo, a ser motivado a estudar? O jornalismo tem um contexto social muito importante, ele consegue unir o aprendizado ao contexto. E o jornalismo precisa ter um estímulo do estudante, fazendo que o aluno perceba a importância da escola, tendo uma outra visão. A escola contribui para que o jovem seja um cidadão de fato, tendo entendimento democrático, da sociedade, e o aluno percebe através do jornalismo.
Os resultados obtidos até agora são que os jovens que participam do jornalismo na escola, um jornalismo não-formal, acabam tendo gosto pela escola. Acabam também valorizando o jornalismo, e acaba reverberando lá na frente. Os jovens recebem as informações de todos os lugares e não valorizam o papel de um jornalista.
Impressões: Como você avalia as políticas públicas relacionadas à educação midiática?
Ivone: Temos poucas políticas públicas. Se olhar para o tempo da internet, a política pública de Estado para as novas mídias da sociedade engatinha. Temos a Base Nacional Comum Curricular que define os conteúdos a serem utilizados na educação básica, mas ainda é muito pouco. Tivemos, no ano passado, a primeira Semana Brasileira de Educação Midiática do Governo Federal, mas a participação foi pequena. A sociedade, os grandes grupos, ainda não têm a noção de que necessitam de uma educação midiática.
Midiaticamente, as pessoas precisam saber o conteúdo que consideram importante, saber o momento de compartilhar, engajar. Precisam saber os conteúdos que recebem via redes sociais e mensageiros, por exemplo. A sociedade não pode passar adiante sem que ela tenha a certeza de que aquela informação é verdadeira e não pode passar a opinião como um fato.
No caso das plataformas, elas não são brasileiras e agem a bel prazer. Eles patrocinam o governo. E qual é o retorno delas? O retorno é poderem fazer o que quiseram, autorizam o que as plataformas querem. E o cidadão vai tendo problemas, como o Elon Musk recentemente, que criticou o Ministro do Supremo Tribunal Federal. Criticou, não, acusou. Acusou a nossa política de ditatura, quando, na verdade, a ditatura vem dessas próprias plataformas que agem da maneira como elas querem e não como as regras da sociedade brasileira.
Falta muita política pública. A gente teve, recentemente, o Projeto de Lei 2630/20, que era justamente para regulamentar a internet e o uso dela. E ela (Projeto de Lei) foi extinta, falaram (parlamentares) que iriam ser formados outros grupos para desenvolver outro projeto, mas acabaram com o projeto que regulamentava. Houve muita discussão em cima do projeto e não tem nada de política pública que possa regulamentar para nos ajudar. No Brasil, muitos especialistas em marketing digital falam que “o Brasil utiliza muito mais [as plataformas digitais]. Está muito mais na frente do que na Europa em relação ao uso das plataformas, e da internet”. Porque o Brasil usa mais o WhatsApp, utiliza a internet mais dentro da escola. Aí quando vai olhar para a Europa, isso não acontece lá. Não é que eles estejam atrasados em relação aos brasileiros. Na verdade, eles têm regras que são cumpridas. Então não é qualquer um, ou qualquer empresa que vai chegando e colocando tudo dentro para que todo mundo aceite. Existem políticas públicas e, por conta disso, a educação midiática na Europa é diferente do Brasil. Isso também acontece nos Estados Unidos, por exemplo, o TikTok que tudo indica que vai ser proibido. Falta política pública nesse sentido e nós, brasileiros, estamos correndo muito lentamente, engatinhando, na verdade, nesse sentido.
Impressões: Você é professora em cursos na área de comunicação desde 2004. Na sua opinião, como a educação midiática deve ser trabalhada nos currículos de Jornalismo?
Ivone: O jornalismo precisar sair um pouco, na minha opinião, daquela caixinha de ensinar Filosofia, Sociologia, Psicologia, Comunicação para saber se comunicar fora. Isso é importante, claro, mas não é só isso. Precisamos colocar nos currículos de Jornalismo, de alguma forma, a concepção de cidadania, de democracia, de pensamento coletivo. São questões que precisam ser trabalhadas, na prática, dentro do ensino de Jornalismo. Não somente depois, na pós-graduação, onde se discute muito esses temas, pois são temas que precisam estar, precisam permear o estudante desde a sua base. E o ensino de jornalismo precisa ter isso também.
Essas questões envolvendo a democracia, sociedade e liberdade de expressão não precisam ficar apenas nas conversas de bar e de estudantes e leituras de comentários de jornalistas já conceituados. Têm que estar dentro da sala, estudar o conceito de cidadania, democracia e da cidadania digital, pensamento coletivo, pensamento crítico. E a interrelação, a transdisciplinaridade, as disciplinas e os professores precisam conversar, e com os alunos também, precisam estar conectados. Os conteúdos abordados precisam se conectar. Lembro do Adelmo Genro Filho, que diz que o jornalismo precisa se encarregar e ser responsável por prover e fazer a curadoria, a partir de suas experiências das informações transformadas em notícias. Isso é práxis para o jornalista. O jornalista é um sujeito crítico que atua no cotidiano. Ele precisa atuar dessa forma dentro da universidade.
Impressões: Conte-me um pouco sobre o projeto social Memórias em Rede, que leva o Jornalismo para as escolas públicas na cidade de Santos. Como começou?
Ivone: O projeto Memórias em Rede começou a partir de alguns questionamentos sobre a escola e a formação dos estudantes, sobre a problemática da falta de leitura e do pouco interesse, ou desinteresse pela leitura dos alunos.
Tenho muitos anos de atuação no terceiro setor, não apenas com foco em educação, e o projeto surgiu nessa perspectiva. A partir da Educomunicação e do pensamento freireano, das teorias de Paulo Freire, onde o indivíduo sai da condição de oprimido e passa a ter a educação como prática da liberdade. É quase assim: eu sou livre na medida em que conheço o mundo e sei transitar nesse mundo, respeitando as pessoas, sendo respeitada, e seguindo as regras estabelecidas pelo coletivo, etc.
O projeto surgiu como uma forma de valorizar a memória do sujeito sobre o seu território. Surgiu com o propósito de ingressarmos nas escolas com o objetivo de que os alunos brincassem de ser jornalistas, entrevistando pessoas mais velhas da cidade, como forma de valorizar esse território dele. Mas, dentro da escola, o gestor do projeto percebeu uma fragilidade muito maior dos alunos, dificuldades no relacionamento, problemas familiares, problemas dentro da escola. A partir disso, o projeto foi se adequando no sentido de ouvir esses estudantes, porque percebemos que sentiam falta de ouvir e de serem ouvidos. Então, ouvindo os estudantes e estudando, e entendendo o círculo de cultura do Paulo Freire, a gente acabou adaptando para uma nova metodologia, a metodologia dos círculos.
A metodologia trabalha a valorização do eu, da família, da escola e do território. Nós trabalhamos com a autoestima desses jovens para que eles entendam como são e como se representam para o mundo, para a família, para o território. Trabalhávamos esses jovens por meio das entrevistas, em que eles entrevistavam e tinham a prática de ouvir. A prática de ouvir é do jornalismo. Os estudantes ouviam por meio das manchetes da semana. Por exemplo, você vai editar a sua manchete da semana e conta o que aconteceu de mais importante, sendo positivo ou não e você contaria isso em um círculo.
Quando o jovem começava a contar a sua manchete, o outro colega vai se identificando com ele. E partiam para a entrevista, uns com os outros. Montavam duplas, trios e iam se entrevistando. Isso fez com que os colegas se aproximassem, foi aumentando o amor, o carinho, o afeto entre eles, que era o propósito. Depois, partiam para a família, para a escola, para a diretora, a merenda da escola, e assim em diante, entrevistando, conversando e dando sugestões. Com esse projeto, eles foram se aproximando da escola.
Os estudantes levavam o projeto para casa, no território onde moravam, e descobriam o que tem no território e, descobrindo o que tem, vão enxergando qualidades onde moravam. Teve uma escola onde trabalhamos, na periferia de Santos, em que os alunos passaram a gostar demais do bairro onde moravam. Conheceram o Seu Zé, que vendia chup-chup, tinha uma história interessante, de como ele conheceu a mulher dele, e os jovens foram se apaixonando pelos lugares onde moravam.
Atuei no projeto de 2018 até 2023. A minha pesquisa de doutorado é a partir desse período de cinco anos. Em 2025 iniciarei um novo projeto que será baseado na leitura. Eu tenho um propósito na minha vida, que é fazer com que os jovens se interessem mais pela leitura, pois pode modificar a vida deles. E quando chegarem no ensino superior, tudo será mais fácil a partir do hábito de leitura.