domingo, 22 de junho de 2025
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A segunda casa de Belzinha e Silvani

“Este lugar é minha segunda casa.” — Izabel de Oliveira

Por: Eduardo Medrado e Vitor Spíndola

Supervisão: Professora Gabriella Luccianni

Antes do campus acordar

Foto: O Amanhecer do Bloco B do Câmpus V da PUC – GO

“Às 4h15 eu já estou de pé. E não é só trabalhar aqui. Em casa também tem minhas meninas. Criei as três sozinha.” — Izabel

As luzes das salas ainda estão apagadas. O silêncio dos corredores ecoa como um respiro antes do turbilhão acadêmico começar. É nesse momento, em que quase ninguém vê, que começa o trabalho de Belzinha e Silvani.

Às 4h15 da manhã, o despertador toca na casa de Izabel. E ainda no escuro, ela inicia sua jornada até a universidade.. Enfrenta o transporte público ainda no escuro para chegar a tempo. Quando pisa nos corredores, começa seu trabalho em silêncio, preparando os espaços antes mesmo do movimento começar. “Criei minhas três filhas com esse trabalho. Formei todas. Nada foi fácil, mas eu venci.”, afirma Belzinha, sua luta do dia a dia.

Silvani, que mora com o filho adolescente, também equilibra a jornada profissional com os desafios da maternidade. “Às vezes ele é um pouco rebelde, sabe como é, né? Adolescência. Mas eu dou conta.”, comenta, com um sorriso resignado.

Apesar das diferenças de tempo e rotina, as duas compartilham cumplicidade. “Não pode menosprezar ninguém. Aqui, uma ajuda a outra. É assim que dá certo”, afirma Izabel, que ensina as colegas mais novas como se fossem suas filhas.


Silêncio, suor e responsabilidade

Enquanto o campus parece imóvel, os baldes giram, os rodos deslizam, e os cheiros cítricos do desinfetante anunciam que há vida no espaço antes mesmo do movimento acadêmico. São nesses objetos — na luva dobrada sobre o carrinho, na vassoura encostada ao canto do corredor — que mora a presença de quem raramente é vista. O trabalho de Izabel e Silvani é físico, mas também emocional.

É construção de ambiente. É tornar um espaço habitável, acolhedor. Elas fazem isso não apenas com força, mas com uma generosidade que não cabe em currículo.

Parceria que se aprende, respeito que se ensina

“Ensino respeito, parceria. Ninguém faz tudo sozinha. E só porque uma estudou mais, não quer dizer que vale mais. Aqui, todo mundo tem valor.”

Izabel tem o hábito de acolher funcionárias novas como filhas. Ensina os trajetos, os produtos, os cuidados. Mas ensina, sobretudo, que não existe hierarquia entre quem limpa e quem leciona. É nesse chão que nasce uma ética silenciosa e coletiva — ensinada longe da lousa.

Mais do que limpeza: pertencimento

“Os alunos me adoram. Me abraçam, me beijam. Tem uns que vêm só pra me ver.” — Silvani


O trabalho das duas vai além da limpeza. É também relação, escuta e presença. Entre um corredor e outro, surgem conversas, sorrisos e trocas sinceras com a comunidade acadêmica. Professores, coordenadores e estudantes reconhecem esse vínculo.

Izabel conta que é respeitada até mesmo nos momentos mais delicados do trabalho: “Quando estou limpando banheiro de homem, eles perguntam se podem entrar, esperam. Isso é respeito. E eu também respeito muito o espaço deles.”

“Nunca fui desrespeitada aqui. Sempre recebo mensagens no Dia das Mães, no Natal. Isso me dá força pra continuar.” — Izabel

Nem só de sabão vive a limpeza. Há também o afeto. Em datas comemorativas, são lembradas com carinho. Presentes simbólicos, abraços, recados e fotos registram esse afeto construído com o tempo. A universidade, para Izabel, virou mais que local de trabalho: tornou-se lar simbólico, espaço de memórias e conquistas. “Tem dia que a gente chega cansada, sem forças. Mas aí vem alguém, conversa, sorri. Isso muda tudo”, diz Silvani.

Silvani reforça esse sentimento: “Os professores são uns amores. Tem aluno que sobe só pra conversar comigo. Isso me deixa feliz.”

Reconhecimento que precisa sair dos bastidores

Foto: João Victor Martins, estudante do curso de Direito da PUC-GO

João Victor Martins, estudante do curso de Direito, diz que não consegue imaginar a rotina universitária sem a presença das funcionárias da limpeza. “Elas fazem parte da nossa convivência. Estão sempre com um bom dia, um sorriso, uma conversa. São pequenas atitudes que mudam o nosso dia.”

Para ele, o trabalho dessas mulheres ultrapassa o limite funcional da limpeza. “Elas não estão aqui só pra limpar. Elas acolhem. Elas escutam. Elas cuidam da gente também. Muitas vezes, quando a gente está estressado com prova, cansado, elas falam algo leve, soltam uma piada. Isso não tem preço.”

João lembra que, em algumas situações, notou colegas entrarem apressados na sala e pararem por um segundo só para cumprimentar Izabel ou Silvani. “Isso mostra o quanto elas são queridas. E mesmo assim, ainda são pouco reconhecidas institucionalmente. Elas são parte da universidade, tanto quanto os professores ou os alunos.”

O reconhecimento social de quem limpa os espaços que habitamos ainda é um processo em construção. Mas nas palavras e gestos de João, é possível perceber um movimento real: o de enxergar e valorizar quem, por tanto tempo, foi ignorado.

Presença que permanece nos corredores

O som do esfregão pode parecer monótono, mas é ele quem antecede o ruído das aulas. Nos corredores, entre as conversas rápidas, há sempre um aceno, um “bom dia”, um sorriso. Silvani conta que os alunos a abraçam, a cumprimentam, e que há até quem mude de andar só para vê-la. Izabel lembra que é tratada com respeito — até mesmo quando está limpando o banheiro masculino. “Isso é respeito. E eu respeito muito o espaço deles também. Aqui é minha segunda casa.”

Você sabia?


O termo trabalhadores invisíveis se refere àqueles que, como Izabel e Silvani, realizam atividades essenciais ao funcionamento da sociedade, mas passam despercebidos aos olhos da maioria — como faxineiras, porteiros, garis, entregadores e cozinheiras. São profissionais fundamentais, mas que enfrentam desvalorização social, baixos salários e, muitas vezes, condições precárias de trabalho.

Mais de 90% dos profissionais da limpeza no Brasil são mulheres, muitas delas chefes de família. E a sobrecarga vai além da jornada formal. A realidade de Izabel e Silvani reflete uma estrutura mais ampla: segundo o IBGE, em 2022, as mulheres no Brasil dedicaram, em média, 9,6 horas a mais por semana do que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas.

Ou seja: mesmo fora de casa, continuam sendo as principais responsáveis pela manutenção do lar, pelo cuidado com filhos, idosos ou doentes — muitas vezes sem qualquer suporte ou reconhecimento. Essa é a lógica que sustenta e normaliza a invisibilidade.

Segundo um levantamento da MADE/USP, no terceiro trimestre de 2022, o trabalho doméstico remunerado somava cerca de 5,4 milhões de pessoas — 92% mulheres e 67% negras.

Já em 2024, mais de 1.684 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão, muitos deles atuando em funções tidas como invisíveis, como a construção civil, o trabalho rural e os serviços de limpeza, segundo dados do Ministério do Trabalho.

Linha do tempo da trajetória de Izabel e Silvani na PUC-GO

AnoEvento
2002Izabel começa a trabalhar na PUC-GO
2017Silvani entra na equipe de limpeza
2024Izabel se prepara para a aposentadoria

Onde ninguém vê, elas passam

Foto: Mapa tátil do Bloco B do Câmpus V da PUC – GO

No corredor do Bloco B da universidade, um mapa tátil que orienta os estudantes com deficiência visual. Curiosamente, ele também representa os setores onde Izabel e Silvani passam todos os dias — blocos, escadas, banheiros, corredores. São lugares que elas conhecem de cor, não por toque, mas por anos de experiência, suor e dedicação.

Uma fotografia desse mapa, com marcações simples dos blocos onde elas atuam, ajuda a visualizar o alcance do trabalho dessas mulheres e a dimensão do espaço que percorrem diariamente.

O espaço da universidade está coberto por sua presença, mesmo quando ninguém nota.

Silêncio que sustenta tudo

Foto: Bloco B do Câmpus V da PUC – GO

Com a aposentadoria próxima, Izabel fala do que sentirá falta: “O que eu mais vou sentir falta é disso aqui. Da convivência. Dos alunos. Dos amigos. Isso aqui foi minha vida.”.

Silvani segue, mantendo a mesma generosidade. E ambas deixam um legado que está nas relações e no ambiente. A limpeza que fazem é física, mas também simbólica.

Ao final do dia, quando os corredores voltam a esvaziar e os últimos alunos deixam as salas, Izabel e Silvani guardam seus materiais e seguem para casa. O corpo cansado carrega mais do que o peso de um dia de trabalho. Carrega a certeza de que, mesmo invisíveis para muitos, elas são essenciais para que tudo continue funcionando.


Num mundo que se acostumou a ignorar quem limpa o chão por onde pisa, essas histórias precisam — e merecem — ser contadas.

INTERAÇÃO – Quiz: O quanto você enxerga quem limpa sua escola ou trabalho?

Responda sinceramente:

1. Você sabe o nome de alguma funcionária da limpeza da sua universidade?

2. Já agradeceu ou cumprimentou alguma delas esta semana?

3. Sabe em quais blocos ou turnos elas atuam?

4. Já ouviu alguma história de vida delas?

    Se você respondeu “não” para a maioria:

    Você não está sozinho — mas pode estar perdendo a chance de conhecer quem sustenta seu cotidiano, um pedaço invisível de sua vida.

    Dê um passo simples: diga “bom dia” amanhã. E repasse esta história.