Depois de perder familiares e amigos, Rita Valle decidiu se aventurar, após muitas décadas nessa Terra, por um mundo novo: a literatura. Se tornou escritora, e transformou a morte em sua personagem, e hoje, quase centenária, desbrava textos e palavras
Por Letícia Marielle, Vinícius Mariano e Yorrana Maia | Editores: Maísa Martins e Rodrigo Melo
Quem passar pela Catedral Metropolitana de Goiânia, com alguns passos a mais poderá ver um prédio que, por entre os corredores antigos, esconde o apartamento de uma mulher com histórias para contar. Dona de um andar firme e decidido de quem já não tem tempo a perder, mas ainda possui prazer em caminhar, Rita Valle percorre o labirinto do edifício com a facilidade de quem já o conhece há anos.
De pés inchados e doloridos, e com o auxílio da bengala, Rita engana a velhice. Anda de um lado para o outro pelo centro da capital. Participa de curso de inglês, oficinas de artesanato, aulas sobre histórias de vida e alguns grupos de dança. Possui a voz marcante e certeira de quem já se acostumou consigo mesmo, e não vê mais problema em revelar para uma sala inteira que ainda possui uma forte libido. Quem a conhece, sabe muito bem que Rita Araújo Valle tem 90 anos de idade.
Sentada em seu sofá branco, decorado com uma pequena manta de crochê azul marinho e almofadas coloridas, Rita ora cruzava os braços em torno da barriga, revelando as unhas pintadas de rosa, ora enfiava a mão esquerda por entre a fenda do estofado, pensativa. Eram décadas de história para se lembrar e, com o espírito aventureiro e livre desde nova, Rita tem muito para se recordar. E se há uma coisa que uma mulher quase centenária pode ensinar é que uma vida feliz não é feita somente de momentos agradáveis.
Nascida em uma família numerosa, com 10 irmãos, Rita conheceu a morte ainda nova. Ela perdeu o pai aos 13 anos. Na época, não conseguia entender o luto, apesar de ter sido obrigada a vestir preto por muito tempo. Foi somente quando um raio inusitado tirou a vida da irmã mais nova que entendeu o significado de perda. Ela mesma amamentou a sobrinha, já que na época tinha acabado de ter um filho.
Com tantos anos por essa Terra, é de se esperar que a morte tenha passado por seu caminho várias vezes. Perdeu irmãos, mãe, marido, amigos, e familiares. Às vezes, meio inconformada, outras amargurada, demorou para Rita finalmente aceitar a relação com essa personagem, que queira ou não, faz parte da vida de todos.
Quando o marido infartou e caiu morto na estrada para a chácara, Rita não conseguiu chorar. Não sabe ao certo o porquê. Era o seu grande amigo, mas não o seu amor. Ela queria ser mãe, então decidiu se casar com alguém que a tratasse bem, por observar como a irmã sofria com o matrimônio. Depois de “enrolar o galo” em um namoro e noivado de anos, Rita se casou aos 26.
Aos 62 anos, ficou viúva num dia de jogo da Copa do Mundo de 1994. A partir daí, começou a transformar em palavras os sentimentos e lágrimas que não conseguiu expressar. Escrevia textos para levar para o terapeuta, que acabou a incentivando a continuar com a prática. Aos 63 anos, publicou o primeiro livro Música de um Sonho. Em 2019, participou da 9ª edição do programa Goiânia em Prosa e Verso e teve o segundo livro, intitulado Estranha Criatura, publicado aos 77 anos.
Mesmo com a idade avançada, Rita não se importou em se levantar várias vezes durante a entrevista para pegar os textos que escrevera. Desde cartas feitas para as aulas de história de vida até os contos dos seus livros, a mulher já grisalha leu todos com o orgulho de um criador. São sentimentos que ela conseguiu desenterrar do peito e verbalizá-los nas mais poéticas histórias. Rita não se considera uma escritora. A escrita é algo tão essencial em sua vida que não merece ser comercializada. Ela distribui seus livros apenas com uma única exigência: passe adiante.
Apesar de não ter interesse em publicar um terceiro livro, Rita não parou de escrever. Em um dos quartos de seu apartamento, repousa o mais fiel e longevo companheiro, o único que não pode viver sem, Fidelis, seu caderno. Nele repousa sentimentos, pensamentos e lembranças, e ela gosta de folhear as páginas do passado e se divertir com as coisas que escreveu.
Resumir Rita Valle como apenas uma viúva que encontrou um refúgio na literatura seria como dizer que uma pintura é feita de um único elemento. Talvez, o que a quase centenária mulher pode mostrar é que ninguém é feito de um traço só. Com um emaranhado de linhas pulsantes, cada uma vai modelando o próprio ser no decorrer dos anos, e Rita percorreu várias de suas linhas.
Realizou intercâmbio para a Inglaterra com uma amiga, participou de aulas de teatro depois de aposentada, vendeu doces em formato de genitália em peças de cabaré, entrou em um grupo de dança e depois precisou fugir de dois namorados que ficaram muito apegados a ela e não a deixavam mais dançar em paz. E já no final de sua estrada, ainda não deixa de se surpreender consigo mesma.
Com tantas perdas ao longo da vida, a morte talvez tenha feito Rita se ressignificar. Construir-se a partir dos pedaços partidos. Sentada no sofá que contrastava com curtos cabelos grisalhos, Rita confessou já ter sido uma pessoa amarga, mas agora está diferente. Dona de textos, lembranças e sentimentos agradáveis ou não, Rita Valle espera confiante o encontro em que a misteriosa senhora a tomará pelas mãos e a levará para um novo mundo. Mais um para a sonhadora e aventureira Rita desbravar.