quarta-feira, 23 de outubro de 2024
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A breve história de uma sonhadora

Depois de perder familiares e amigos, Rita Valle decidiu se aventurar, após muitas décadas nessa Terra, por um mundo novo: a literatura. Se tornou escritora, e transformou a morte em sua personagem, e hoje, quase centenária, desbrava textos e palavras

Por Letícia Marielle, Vinícius Mariano e Yorrana Maia | Editores: Maísa Martins e Rodrigo Melo

Rita do Valle lendo o seu mais velho companheiro, seu caderno Fidelis

Quem passar pela Catedral Metropolitana de Goiânia, com alguns passos a mais poderá ver um prédio que, por entre os corredores antigos, esconde o apartamento de uma mulher com histórias para contar. Dona de um andar firme e decidido de quem já não tem tempo a perder, mas ainda possui prazer em caminhar, Rita Valle percorre o labirinto do edifício com a facilidade de quem já o conhece há anos.

Corredor do edifício onde se localiza o apartamento de Rita Valle

De pés inchados e doloridos, e com o auxílio da bengala, Rita engana a velhice. Anda de um lado para o outro pelo centro da capital. Participa de curso de inglês, oficinas de artesanato, aulas sobre histórias de vida e alguns grupos de dança. Possui a voz marcante e certeira de quem já se acostumou consigo mesmo, e não vê mais problema em revelar para uma sala inteira que ainda possui uma forte libido. Quem a conhece, sabe muito bem que Rita Araújo Valle tem 90 anos de idade.

Sala de estar da casa de Rita

Sentada em seu sofá branco, decorado com uma pequena manta de crochê azul marinho e almofadas coloridas, Rita ora cruzava os braços em torno da barriga, revelando as unhas pintadas de rosa, ora enfiava a mão esquerda por entre a fenda do estofado, pensativa. Eram décadas de história para se lembrar e, com o espírito aventureiro e livre desde nova, Rita tem muito para se recordar. E se há uma coisa que uma mulher quase centenária pode ensinar é que uma vida feliz não é feita somente de momentos agradáveis.

Nascida em uma família numerosa, com 10 irmãos, Rita conheceu a morte ainda nova. Ela perdeu o pai aos 13 anos. Na época, não conseguia entender o luto, apesar de ter sido obrigada a vestir preto por muito tempo. Foi somente quando um raio inusitado tirou a vida da irmã mais nova que entendeu o significado de perda. Ela mesma amamentou a sobrinha, já que na época tinha acabado de ter um filho.

Rita coleciona estátuas de santos e santas

Com tantos anos por essa Terra, é de se esperar que a morte tenha passado por seu caminho várias vezes. Perdeu irmãos, mãe, marido, amigos, e familiares. Às vezes, meio inconformada, outras amargurada, demorou para Rita finalmente aceitar a relação com essa personagem, que queira ou não, faz parte da vida de todos.

Quando o marido infartou e caiu morto na estrada para a chácara, Rita não conseguiu chorar. Não sabe ao certo o porquê. Era o seu grande amigo, mas não o seu amor. Ela queria ser mãe, então decidiu se casar com alguém que a tratasse bem, por observar como a irmã sofria com o matrimônio. Depois de “enrolar o galo” em um namoro e noivado de anos, Rita se casou aos 26.

Aos 62 anos, ficou viúva num dia de jogo da Copa do Mundo de 1994. A partir daí, começou a transformar em palavras os sentimentos e lágrimas que não conseguiu expressar. Escrevia textos para levar para o terapeuta, que acabou a incentivando a continuar com a prática. Aos 63 anos, publicou o primeiro livro Música de um Sonho. Em 2019, participou da 9ª edição do programa Goiânia em Prosa e Verso e teve o segundo livro, intitulado Estranha Criatura, publicado aos 77 anos.

Rita gosta de folhear as páginas do seu caderno e rir das coisas que escreveu em outra época

Mesmo com a idade avançada, Rita não se importou em se levantar várias vezes durante a entrevista para pegar os textos que escrevera. Desde cartas feitas para as aulas de história de vida até os contos dos seus livros, a mulher já grisalha leu todos com o orgulho de um criador. São sentimentos que ela conseguiu desenterrar do peito e verbalizá-los nas mais poéticas histórias. Rita não se considera uma escritora. A escrita é algo tão essencial em sua vida que não merece ser comercializada. Ela distribui seus livros apenas com uma única exigência: passe adiante.

Várias páginas guardam no tempo as memórias e reflexões dessa quase centenária mulher

Apesar de não ter interesse em publicar um terceiro livro, Rita não parou de escrever. Em um dos quartos de seu apartamento, repousa o mais fiel e longevo companheiro, o único que não pode viver sem, Fidelis, seu caderno. Nele repousa sentimentos, pensamentos e lembranças, e ela gosta de folhear as páginas do passado e se divertir com as coisas que escreveu.

Resumir Rita Valle como apenas uma viúva que encontrou um refúgio na literatura seria como dizer que uma pintura é feita de um único elemento. Talvez, o que a quase centenária mulher pode mostrar é que ninguém é feito de um traço só. Com um emaranhado de linhas pulsantes, cada uma vai modelando o próprio ser no decorrer dos anos, e Rita percorreu várias de suas linhas. 

Realizou intercâmbio para a Inglaterra com uma amiga, participou de aulas de teatro depois de aposentada, vendeu doces em formato de genitália em peças de cabaré, entrou em um grupo de dança e depois precisou fugir de dois namorados que ficaram muito apegados a ela e não a deixavam mais dançar em paz. E já no final de sua estrada, ainda não deixa de se surpreender consigo mesma.

Com tantas perdas ao longo da vida, a morte talvez tenha feito Rita se ressignificar. Construir-se a partir dos pedaços partidos. Sentada no sofá que contrastava com curtos cabelos grisalhos, Rita confessou já ter sido uma pessoa amarga, mas agora está diferente. Dona de textos, lembranças e sentimentos agradáveis ou não, Rita Valle espera confiante o encontro em que a misteriosa senhora a tomará pelas mãos e a levará para um novo mundo. Mais um para a sonhadora e aventureira Rita desbravar.