quinta-feira, 29 de maio de 2025
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“Uberização”: impactos do estilo de trabalho do mundo moderno

Aplicativos como Uber e iFood se transformaram na principal fonte de sustento de milhares de famílias; estudo da Unicamp escancara os problemas da uberização

Motorista de aplicativo durante horário de trabalho. Foto: Agência Impressões.

Por Emanuelle Mattos, Enzo Carmignolli, Gabriela Rezende, Kézia Pimentel e Luanna Mendes

Supervisão: profª Gabriella Luccianni e prof° Ântonio Carlos Cunha.

O crescimento do empreendedorismo no Brasil nas últimas décadas é notável. Somente em 2024, foram abertos mais de 4,158 milhões de novos negócios, segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE). Porém, dentro do espírito financeiro emancipatório do brasileiro, existe uma dura realidade: a ilusão de empreendedorismo oferecida pelas plataformas virtuais de trabalho remunerado.

Aplicativos como o iFood, 99Pop e Uber são o sustento de mais de 1,6 milhões de trabalhadores, segundo o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Muitos deles dependem exclusivamente destes apps para viver.

Entenda sobre o processo de Uberização

O conceito cunhado pelo sociólogo Ricardo Antunes, em seu livro “Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0”, trata sobre a precarização e invisibilidade das relações de trabalho relativas a aplicativos de trabalho sob demanda.

A ideia de “uberização” se baseia em como o trabalho realizado por entregadores e motoristas é submetido a um distanciamento do conceito de emprego, algo que seria constante e regulado por uma legislação oriunda de anos da luta trabalhista, se aproximando da ideia de prestação de serviços – algo que ocorre sob demanda, sem fortes laços entre empregador e empregado.

O trabalhador uberizado decide seu próprio horário, tendo um falso senso de empreendedorismo e liberdade, mas não recebe pelo seu tempo entre os chamados do aplicativo. Também não é pago pelo uso de seus bens pessoais e muito menos tem dias de folga remunerada ou benefícios de saúde, férias, seguro etc.

O que diz o estudo realizado pela Unicamp

Um estudo publicado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), trouxe à tona a realidade inconstante dos motoristas e motoboys de aplicativos submetidos à uberização. Foram 15 entregadores e motoristas entrevistados, dentre eles, os entregadores, que preferiram ser chamados de motoboys, tinham idade média de 25 anos. Já os motoristas, tinham idade média de 45 anos.

A pesquisa demonstrou que os trabalhadores tinham níveis mistos de instrução, mas em geral, eram pessoas com baixa especialização, que enxergavam o aplicativo como uma maneira de se sustentar melhor do que um vínculo CLT.

As mulheres entrevistadas demonstraram enxergar o app como emancipatório. Uma delas citou até que o aplicativo foi o que a permitiu se divorciar de seu ex-marido.

A relação soa superficialmente positiva, mas a quantidade de horas trabalhadas é acima de qualquer padrão regulamentado. A maioria dos motoristas trabalhava mais de 10 horas por dia, com apenas um dia de folga. Já os entregadores tinham jornadas mais variadas, entre 5 e 16 horas, com poucas folgas, semelhante aos colegas de profissão.

Além das longas jornadas, reclamações sobre a insegurança física e a saúde foram constantes. A inexistência da licença médica foi um tópico comentado por muitos dos trabalhadores por aplicativo, além do medo de serem bloqueados pelo app, por recusarem corridas.

Dos 15 entrevistados, o estudo descobriu que seis deles usavam as plataformas para ganhar renda extra, conciliando com outra profissão.

Em entrevista à Agência Impressões, Samuel Lucas, motorista de aplicativo, conta que, em um domingo à noite, furou seu pneu em um bairro periférico da capital, tendo que arcar com o prejuízo de seu carro com o próprio seguro, sem ajuda alguma da plataforma, mesmo estando em expediente.

A dificuldade de conciliação

As empresas ganham em média 20-40% do gasto em seus aplicativos. Essa grande parcela de lucro surge em cima da ausência de apoio aos trabalhadores, sob o falso preceito de liberdade econômica.

O Projeto de Lei Complementar 12/2024 tentou regulamentar a atividade de viagens por aplicativo em veículos de quatro rodas. O projeto foi desenvolvido para estabelecer um salário-mínimo para a função, com contribuição previdenciária e claridade nas regras de bloqueio/suspensão do aplicativo.

Entretanto, houve um profundo desagrado da comunidade de motoristas, que se revoltou com a criação de um tempo máximo de rodagem e um salário-mínimo. De acordo com eles, a decisão limitaria e dividiria os ganhos dos motoristas, que passaram a buscar a alteração do texto do PLP 12/2024.

Além disso, passaram a circular diversas fake news sobre o projeto. As notícias falsas funcionaram como combustível para o caos, gerando ainda mais confusão. Em resposta, o ministro do Trabalho e Emprego, Francisco Macena, apareceu em vídeo para desmentir as informações falsas:

O tópico do vínculo empregatício entre trabalhadores de plataformas e as plataformas é extremamente controverso, como explica a advogada Júlia Gondim.

“Não existe um entendimento unânime com relação a essa questão. Hoje, a análise do juiz precisa ser feita caso a caso. Utilizando quatro critérios que definem a relação de trabalho no Brasil. A pessoalidade, ou seja, a pessoa não pode ser substituída por outra; a onerosidade, que é a pessoa trabalhar mediante pagamento; a não eventualidade, que quer dizer que a pessoa precisa prestar o serviço de forma contínua e a subordinação jurídica, que é o trabalhador estar sob ordens e controle do empregador.”

Júlia explica que as plataformas alegam que, como o trabalhador pode selecionar seu horário de trabalho, o princípio da não eventualidade não se aplica. Assim, a relação empregatícia é inexistente. Porém, ela conta que, mesmo com a maioria dos casos sendo analisados desta maneira, existem entregadores e motoristas que tiveram sucesso na luta pelos direitos trabalhistas.

A presença do contraditório na luta por direitos

Nos dias 31 de março e 1º de abril deste ano, os entregadores de aplicativos se reuniram e paralisaram suas atividades por todo o Brasil. O ato foi um protesto contra as precárias condições de trabalho enfrentadas diariamente. Entre as diversas queixas, se destacam o pedido de tarifa mínima de R$10 por entrega, remuneração justa e o reconhecimento dos direitos trabalhistas.

De acordo com o Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Mototaxistas do Estado de São Paulo (Sindimotosp), “atualmente, os entregadores enfrentam longas horas de jornada de trabalho, recebem um valor de entrega que insuficiente para uma razoável renda mensa, para o pagamento de contas ou investimento em equipamentos de segurança”.

Apesar de válida, é encontrada uma incoerência nessa movimentação, ao analisar os fatos ocorridos em março do ano passado, quando foi divulgado o PLP 12/2024. O projeto de lei complementar, que visa garantir direitos como filiação sindical, acordos coletivos de trabalho, segurança jurídica, definição de carga horária e jornada de trabalho, além de proteção contra punições injustas, não foi bem aceito, como citado anteriormente.

Porém, o projeto teve má repercussão não somente entre seu público-alvo, mas entre os entregadores sobre motos também: “Conselho dos Sindicatos de Motoboys, Entregadores, Mototaxistas e Bike Boys do Brasil aguarda com apreensão PL sobre regulamentação de empresas de app que pode tirar de vez direitos trabalhistas”, diz o título da matéria publicada pelo Sindimotosp no dia 4 de março de 2024.

A contradição é clara. O que antes poderia ser o início de uma revolução para melhorar as condições de trabalho para todos os trabalhadores de aplicativos, acabou se tornando alvo de chacota política – diversas manifestações baseadas em ideais, não na realidade.