sábado, 24 de maio de 2025
InicialReportagens

Automedicação em alta: o legado invisível da pandemia

Entenda como o uso de medicamentos sem prescrição médica se intensificou após a COVID-19 e quais os perigos por trás dessa prática comum

Foto de Myriam Zilles no Unsplash

Por Débora Ferreira, Emilly Matos, Guilherme Ferreira, Núbia Nunes e Rebeca Lima.

Supervisão: Professor Antônio Carlos Cunha e Professora Gabriella Luccianni.

Nas farmácias, medicamentos sumiram das prateleiras. Nos grupos de WhatsApp e nas redes sociais, fórmulas “milagrosas” circulavam com força. Em meio à escalada da pandemia de COVID-19, o Brasil assistiu a uma corrida por medicações sem eficácia comprovada, impulsionada por medo, desinformação e discursos oficiais que ignoravam a ciência. 

Um problema que vem de longe

Mais do que um desvio pontual, a explosão da automedicação durante a pandemia escancarou um traço histórico do Brasil: a relação frágil com a regulação farmacêutica, a medicalização da vida cotidiana e a confiança cega em promessas rápidas, ainda que sem evidência. Os danos desse processo, muitos deles ainda invisíveis, continuam sendo sentidos por médicos e pacientes nos consultórios e nas emergências — onde os efeitos do uso inadequado de medicamentos seguem se manifestando. 

Ivermectina, hidroxicloroquina, azitromicina, vitaminas em altas doses — uma combinação vendida como escudo contra o vírus, mas que, na prática, revelou os efeitos colaterais de um país sem política coordenada de saúde pública. O consumo desenfreado e sem prescrição não apenas expôs a população a riscos clínicos, como também refletiu uma falência institucional. 

Para entender a gravidade do cenário e seus desdobramentos ainda visíveis nos consultórios, conversamos com Pedro Gabriel de Lima Carneiro Borges, estudante do último período de medicina pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Ele participou de diversas ligas acadêmicas e experiências médicas e acompanhou de perto os impactos da automedicação, tanto na teoria quanto na prática. 

Impactos durante a pandemia

Segundo Pedro Gabriel, o comportamento de automedicar-se durante a pandemia foi, em certa medida, compreensível. “As pessoas ficaram com muito medo. Como ainda não se sabia exatamente quais seriam os efeitos reais do vírus no organismo, nem havia uma medicação eficaz ou vacina disponível, era natural que surgisse esse desespero por soluções milagrosas”, explica. 

Em um cenário de informações desencontradas e redes sociais inundadas por receitas caseiras e promessas milagrosas, muitos brasileiros passaram a confiar em fórmulas populares como mel, limão, gengibre, açafrão e canela e, mais perigosamente, no consumo de medicamentos como cloroquina, ivermectina e ácido acetilsalicílico (AAS) sem prescrição médica. 

As consequências clínicas desse movimento, como aponta Pedro Gabriel, foram sérias. “Pessoas que tomavam AAS sem indicação apresentavam sangramentos com muito mais frequência. Tivemos pacientes com hematomas pelo corpo todo, simplesmente por medo de pegar COVID e uso indevido do remédio.” Já o uso abusivo de ivermectina e cloroquina em doses acima das recomendadas causou efeitos adversos como prurido, constipação, cefaleia e diarreia. 

Mas, para o estudante de Medicina, talvez o maior estrago tenha sido outro. “A desinformação. O medo e a vulnerabilidade, alimentados por conteúdos nas redes sociais, como Instagram, WhatsApp e Facebook, tornaram as pessoas alvos fáceis para informações falsas. Isso não só prejudicou a saúde delas como causou escassez de medicamentos inclusive para quem realmente precisava”. 

O uso indiscriminado da ivermectina, por exemplo, ignorava completamente seu uso original — o tratamento de verminoses e protozoários. “Em excesso, ela pode causar náuseas, vômitos, lesões na pele, além de cefaleia. A hidroxicloroquina, voltada a doenças reumatológicas, também apresenta efeitos adversos sérios. Já a azitromicina, um antibiótico da classe dos macrolídeos, teve seu uso popularizado por um suposto efeito imunomodulador, mas permanece off label no contexto da COVID-19”, reforça Pedro Gabriel.

Além da pandemia  

O uso errado de antibióticos é especialmente perigoso. Pedro alerta: “Pode levar ao desenvolvimento de resistência bacteriana, um problema gravíssimo de saúde pública. Isso dificulta o tratamento de infecções reais, pois reduz as opções terapêuticas disponíveis”. 

Fora do contexto pandêmico, o problema persiste. A automedicação continua sendo uma prática comum no Brasil. “Hoje vemos um acesso muito maior a medicamentos que antes não eram tão utilizados, como antibióticos do tipo amoxicilina com clavulanato. Muitas pessoas tomam assim que sentem dor de garganta, sem saber que a maioria dessas infecções são virais”, explica o estudante de Medicina. 

De acordo com o estudo realizado em 2024 pela Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) nas cinco regiões do país, com 375 pessoas, um terço dos pacientes utiliza medicamentos sem receita médica e 37% acreditam que os antibióticos são eficazes para o tratamento de enfermidades causadas não somente por bactérias. Atrelado a isso, 55,5% das pessoas não sabem que existe a possibilidade de resistência bacteriana e o surgimento de complicações médicas a partir do uso indevido de antibióticos, seja por altas dosagens ou para o tratamento de verminoses e viroses. 

Além dos antibióticos, Pedro Gabriel aponta o uso indiscriminado de corticoides em pomadas dermatológicas e anti-inflamatórios como nimesulida. “A nimesulida, inclusive, está sendo discutida em alguns estados dos EUA por estar associada a problemas renais.” 

Outro dado alarmante é o crescimento do uso de psicotrópicos sem acompanhamento profissional. “Medicamentos como ansiolíticos e antidepressivos estão sendo consumidos por conta própria, o que pode mascarar sintomas reais, gerar dependência e desencadear efeitos adversos importantes”, avalia Pedro Gabriel. 

Durante a pandemia de Covid-19, devido ao medo, incertezas, isolamento social, morte de familiares e ansiedade, houve a ampliação da automedicação de antidepressivos e ansiolíticos. Dados da pesquisa publicada pela “Editora Publicar” em 2023, “O aumento do uso de antidepressivos e ansiolíticos pós-pandemia e seus impactos”, demonstram que 66,7% dos entrevistados procuraram medicações para o cuidado da depressão; 16,7% buscaram tratamentos para tensão e inquietação (ansiolíticos) e 16,7% afirmaram que a procura de ambos medicamentos foi a mesma. 

Diante desse cenário, Pedro defende que o combate à automedicação comece com a conscientização dos próprios profissionais da saúde, que precisam estar preparados para orientar a população sobre os riscos do uso indevido de medicamentos. Além disso, ele aponta a necessidade de reforçar a fiscalização sobre a venda de remédios sem prescrição, tanto em farmácias físicas quanto online. Para ele, essas são medidas fundamentais para conter a banalização do acesso a fármacos e promover o uso racional de medicamentos no país. 

O uso racional de medicamentos, como conclui o estudante de Medicina, não é apenas um gesto individual. É uma questão urgente de saúde pública, que exige articulação entre profissionais, autoridades, meios de comunicação e a sociedade como um todo. 

De acordo com o Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ), aproximadamente 90% dos brasileiros se automedicam. Ao analisar os dados, analgésicos lideram como os principais medicamentos usados por conta própria, com 64%, enquanto os antigripais ficam em segundo lugar, com 47%, e os relaxantes musculares, com 35%. A pesquisa foi realizada em 2022, com 2.099 pessoas. A margem de erro é de dois pontos percentuais com um nível de confiança de 95%. 

Orientação farmacêutica pode salvar vidas 

Gabriel Rodrigues Carvalho, farmacêutico hospitalar, atua há um ano na área e explica que o uso indiscriminado de medicações sem prescrição médica pode causar vários agravantes à saúde. “O uso irracional de medicamentos pode levar a casos de intoxicação hepática, quadros de resistência medicamentosa, como o uso de antibióticos, podendo causar alergia e mascarar sintomas de determinadas patologias que poderiam ter sido tratadas antes, possibilitando até uma piora no quadro do paciente”, comenta Gabriel. 

Na pandemia de COVID-19, a infecção respiratória aguda causada pelo coronavírus assustou toda a população mundial. Uma pesquisa publicada no site oficial do Ministério da Saúde mostra que, em 2023, o Brasil chegou a 700 mil mortes pela doença. O ex-presidente, Jair Messias Bolsonaro, defendia o uso da Cloroquina, medicamento desenvolvido para o tratamento e prevenção da malária. “Na pandemia da COVID-19, o farmacêutico teve um grande papel no auxílio, tirando dúvidas, orientações, além do controle da dispensação de medicamentos sobre receituários, porque poderia acabar gerando muitos Problemas Relacionados a Medicamentos (PRMs)”, comenta o farmacêutico. 

A dipirona, medicamento prescrito para o alívio da dor e febre, é bem comum no dia a dia do brasileiro. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mais de 215 milhões de doses desta medicação foram comercializadas no país em 2022. Para adquirir a dipirona em farmácias e drogarias no Brasil, não é necessário o uso de receita médica, mas o uso exorbitante pode causar grandes problemas à saúde. 

“A dipirona por exemplo, usada de forma indiscriminada para o tratamento paliativo sem o acompanhamento médico, pode contribuir para mascarar algum sintoma de outra patologia que a pessoa pode estar sendo acometida no momento, a possibilidade de levar a um diagnóstico tardio e na piora do quadro clínico”, afirma o farmacêutico. 

Infodemia

Foto de charlesdeluvio no Unsplash

Durante a pandemia do coronavírus, a automedicação se tornou um tema preocupante, com a disseminação de informações imprecisas sobre os tratamentos. O aumento de consumo de medicamentos, como cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina mostra que houve um uso irresponsável destes medicamentos e a automedicação por parte da população. 

O fenômeno da “infodemia” – compartilhamento demasiado de informações, que podem não ser verdadeiras, durante um momento de vulnerabilidade social – dificultou a triagem de fontes confiáveis, levando ao aumento na venda de medicamentos sem comprovação científica para a COVID-19. 

De acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde, a infodemia pode agravar uma pandemia por diversos motivos, por exemplo, deixando as pessoas mais ansiosas, deprimidas e exaustas afetando o processo de tomada de decisões importantes. 

Automedicação

A distância até a Unidade Básica de Saúde é um obstáculo que leva muitas pessoas a optarem pela automedicação — caso de Elisângela Sousa Silva, 36, estudante de Medicina Veterinária, que prefere tratar os sintomas por conta própria. “Fica muito longe de casa”, justifica. Entre os medicamentos que costuma usar estão dipirona, paracetamol, amoxicilina e ibuprofeno — sempre lendo a bula antes do uso. “São medicações que minha mãe sempre oferece quando estou com algum sintoma”, relata.

Emily Ferreira Leonardo, 25, estudante de Pedagogia, por sua vez, buscou orientação direta em uma farmácia. Ela contou que foi atendida por um farmacêutico, que fez uma análise rápida dos sintomas apresentados. Com a garganta inflamada, decidiu usar um antibiótico e, segundo ela, conseguiu se curar. Ambas relataram não ter sentido efeitos colaterais. 

Durante a pandemia, esse comportamento se intensificou. O receio de se expor em ambientes hospitalares e a sobrecarga do sistema de saúde levaram muitos brasileiros a buscar soluções rápidas em casa. Segundo especialistas, embora a automedicação possa parecer uma saída prática, ela pode mascarar sintomas mais graves e atrasar o diagnóstico correto. 

Além disso, o uso indiscriminado de antibióticos como no caso citado por Emily, contribui para um problema de saúde pública cada vez mais preocupante: a resistência bacteriana. Médicos alertam que, sem a devida prescrição e acompanhamento, o uso dessas substâncias pode comprometer a eficácia futura dos tratamentos, além de trazer riscos invisíveis para o organismo. 

O uso consciente de medicamentos é uma prática essencial para a preservação da saúde e a prevenção de complicações. Automedicar-se sem a devida orientação pode trazer consequências graves e até irreversíveis. Por isso, buscar informação de fontes confiáveis e seguir as orientações de profissionais da saúde são atitudes fundamentais para garantir tratamentos seguros e eficazes.