quinta-feira, 26 de dezembro de 2024
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Olhos que entendem, patas que curam

Animais de estimação e de suporte beneficiam pessoas ansiosas e autistas, respectivamente

Cadela Caju, um dos animais do Centro Universal de Referência em Assistência Animal. Imagem: Graziela Blanch

Por Sarah Marques.

Em um mundo onde as palavras nem sempre conseguem expressar os sentimentos, há aqueles que nos compreendem sem precisarmos dizer nada. Esses seres, com olhos atentos e presença silenciosa, têm o poder de transformar os momentos de dor em alívio e as crises emocionais em serenidade.

Rodrigo Blanch Freiria, 11, foi diagnosticado com autismo e a mãe dele encontrou, no Centro Universal de Referência em Assistência Animal (Curaa), uma instituição que trabalha com Terapia Assistida por Animais (TAA), um caminho para ajudar o menino a diminuir suas crises nervosas depois que começou a ser acompanhado por um cão suporte.

O garoto tem dificuldade de estar no ambiente escolar e participar das aulas. Segundo a mãe, Graziela Blanch,  46, Rodrigo tem “comportamentos externalizantes”, como ela aponta. “Quando ele está bravo, joga o estojo da coleguinha no chão. Às vezes os colegas ficam bravos com ele, porque são crianças, e é natural. E o fato dele estar com o cachorro quebra um pouco esse gelo”, explica Graziela.

O cão, com um colete de identificação, não se comporta como um animal comum. Ele sabe que está ali para prestar serviço. Para Rodrigo, o cachorro oferece suporte quando interage com ele, chama a atenção e, caso necessário, tranquiliza o menino.

O Curaa

O projeto começou a ter vida em 2019, com a terapeuta holística Elaine Bezerra. Antes de criar o Curaa, Elaine era agente comunitária de saúde e gestora de filhotes do programa Cão Guia. “O Curaa nasceu de uma consequência de cães guias que não se graduavam como tal, mas, ainda assim, tinham aptidão natural para o trabalho, não para com o cego, mas para a pessoa com deficiência. Percebi que o cão aproximava as pessoas e quebrava barreiras e a mais gritante era a inclusão de verdade e na prática que o cão consegue fazer em aproximar pessoas e arrancar sorrisos”, declara a terapeuta.

Além de exercer uma ação admirável, o Curaa trabalha todos os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), a qual utiliza o cão como uma ferramenta de tecnologia assistiva viva.

Os cães auxiliam crianças autistas e com transtorno de ansiedade e depressão e atendem hospitais em visitas aos leitos, além de disponibilizarem os animais para apoio pedagógico em escolas da rede estadual para alunos com Transtorno de Espectro Autista (TEA) e Deficiência Intelectual (DI).

O Curaa também tem parceria com associações como o Núcleo de Arte e Inclusão do Autista (NAIA) e a Associação de Acolhimento à Pessoa com Paralisia Cerebral (APC+).

Conheça mais o Curaa

Adaptação e desafios do vínculo

A vida de Graziela e Rodrigo não é feita apenas de momentos de tranquilidade. Recentemente, a família enfrentou um grande desafio: teve que devolver o cão quando os antigos donos o requisitaram de volta. Foi uma notícia impactante para Rodrigo, que já havia desenvolvido um carinho pelo cachorro. Para a mãe dele, esta foi uma oportunidade de ensiná-lo a criar novos laços e de perceber que o amor pelo animal não é substituível.

Para suprir a falta, o Curaa deu apoio e, assim, chegou Chico, um filhote de três meses. “O Chico é um bebê, ainda está em fase de socialização, mas já tem trazido alegria para o Rodrigo e para toda a nossa casa”, diz Graziela. “Nos momentos difíceis, o Chico nos lembra que o amor pode se renovar e que, mesmo com a perda, podemos seguir em frente.”

Essa renovação de vínculos é algo que ela transmite aos filhos, sempre com uma lição de vida. “É difícil, sim. Mas, ao perdermos um animal, também aprendemos que o espaço para o amor é infinito. O amor que sentimos por cada animal nunca será substituído, mas sempre será renovado.”

A terapia silenciosa dos animais de suporte

Embora os cães de suporte sejam diferentes de animais de estimação, eles desempenham um papel vital para quem os acompanha. Eles não são apenas amigos; são guardiões emocionais. “Muitas pessoas pensam que um cão de colete está triste ou que não brinca. Mas ele não está ali para brincar. Ele está ‘trabalhando’. Seu trabalho é observar, proteger e agir nos momentos em que o dono mais precisa”, Graziela explica.

Essa noção de trabalho silencioso e dedicado é um conceito pouco compreendido, mas essencial. “O animal de suporte tem um treinamento específico. Ele deve ser calmo, obedecer a comandos e perceber mudanças sutis no comportamento de seu dono. Em momentos de crise, o animal intercede, fazendo o papel de mediador emocional, interrompendo um ciclo destrutivo antes que ele se torne incontrolável.”

Em Goiânia, foi estabelecida uma lei em 2023, a qual permite que pessoas com deficiência sejam acompanhadas por cães de suporte em espaços públicos como shoppings e mercados. No entanto, Graziela faz uma ressalva que, mesmo com a lei, as pessoas ainda têm uma visão limitada e preconceituosa em momentos que veem os cães em passeios de família, como no shopping.

“É importante perceber a interação. Nem todos os autistas toleram o contato físico com um animal. Cada criança tem uma reação diferente. Alguns, como o Rodrigo, se sentem aliviados com a presença do cão. Outros podem não tolerar a aproximação. É fundamental entender e respeitar essas diferenças” reforça a mãe.

A força do vínculo: histórias de transformação

Cada vez mais, pessoas têm experimentado o poder transformador dos animais em suas vidas, especialmente quando esses animais são parte integrante de um processo terapêutico. Um artigo publicado pelo iberdrola apresentou benefícios de ter um animal de estimação, e, dentre eles, estão o combate à depressão e à solidão, afinal, estar do lado de um animal desenvolve o contato e a comunicação.

Ester Nolêto, 20, por exemplo, encontrou na companhia de sua vira-lata, Wakanda, uma fonte de alegria e conexão, especialmente durante o período de isolamento da pandemia. “A Wakanda trouxe mais movimento para nossa casa. Ela é incansável em sua busca por carinho, sempre pedindo atenção, brincando com todos. E, no meio do caos, ela nos ensina a ser mais presentes”, diz Ester.

Vitor, 20, por sua vez, recebeu a cadela Emilly Vitória em sua casa após a perda da avó, que era a dona do animal. No início, a relação deles não era receptiva, mas Emilly desenvolveu um carinho pelo novo dono dela. “Por um tempo da minha vida que eu estava acostumado com um amigo dormir todo o final de semana aqui em casa, daí eu me desentendi com esse amigo e foi quando a Emilly Vitória começou a dormir no meu quarto, aí eu nunca mais dormi sozinho”, declara Vitor.

Matheus Louback, 26, também tem uma história de amor e apoio com seus cães. “O Toby era um Beagle que sempre me fazia sentir mais leve. Ele sabia quando eu estava triste e, sem dizer uma palavra, me fazia companhia. Quando ele se foi, senti que um pedaço de mim também se foi”, lembra Matheus.

O impacto de uma companhia silenciosa

O impacto dos animais, sejam cães, gatos ou outros, é inegável. Estudos comprovam que a presença de um animal de estimação pode melhorar a saúde mental, reduzindo os níveis de ansiedade e trazendo alívio para quem sofre de depressão. Segundo um estudo norte-americano realizado pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC), ter um campaneiro animal ajuda na liberação de endorfina, hormônio que promove a sensação de bem-estar e felicidade.

Mas, para além dos estudos e pesquisas, o que realmente importa são as histórias humanas. Histórias como a de Grazi, Ester, Vitor, Matheus e tantos outros, que, ao lado de seus animais, aprendem a ressignificar emoções e a transformar suas vidas.

Os animais de suporte, com sua presença silenciosa e fiel, têm o poder de transformar as vidas de quem os recebe. Seja para quem enfrenta desafios emocionais como Rodrigo, ou para quem busca simplesmente um pouco de alívio e alegria, esses seres dedicados nos ensinam que o amor não conhece barreiras.

Tanto Rodrigo, com um cão suporte, quanto aqueles que têm animais de estimação fazem parte de um grupo que se beneficia das propriedades trazidas por um bichinho. O Brasil é o terceiro país do mundo que mais tem lares com animais de estimação, segundo a pesquisa Quaest de 2024, ficando atrás apenas da China e dos Estados Unidos.