Por Laís Queiroz e Nívia Menegat
Os indígenas estão trocando os tacapes e os arcos e flechas por câmeras fotográficas digitais na luta por seus direitos. Equipamentos modernos mais acessíveis se tornaram ferramentas importantes na resistência constante contra as tentativas de genocídio e extermínios dos povos originários. Fotógrafos, conhecidos internacionalmente, estão construindo uma nova narrativa sobre as comunidades indígenas e sobre os desafios vividos por eles aqui no Brasil no exterior.
Não existe com precisão a quantidade de profissionais indígenas que atuam como fotógrafos, pois não existe uma organização formal que reúna esses profissionais no mercado de trabalho. Mesmo sem uma entidade profissional, todos trabalham em prol de objetivos comuns: utilizar as câmeras fotográficas para defender os territórios, lutar e garantir direitos fundamentais aos povos originários.
Para Kuiaitsi Kuikuro, mais conhecido como Bob, a câmera é a arma que ele usa para mostrar no exterior, os problemas e desafios que enfrentam em seus territórios no Brasil, em constante ameaças por invasões de madeireiros, garimpeiros, agropecuaristas e desmatadores. “Hoje em dia a câmera está sendo muito importante para nós e para nossa luta”, ressaltou ele, em entrevista concedida à Agência Impressões. Bob foi o nome profissional escolhido na terra do Tio Sam para facilitar para os estrangeiros, que não conseguem pronunciar o seu nome indígena.
A entrevista realizada com “Bob” Kuikuro só foi possível graças a tecnologia que nos conecta. Dentre os compromissos de sua agenda de trabalho nos Estados Unidos, ele abriu espaço para nos atender de forma remota numa conversa on-line. O trabalho do fotógrafo é reconhecido internacionalmente por expor imagens daqueles que violam o meio ambiente.
Em 2018, foi premiado nos EUA com uma foto que registrava ameaças às florestas e situações que intensificam as mudanças climáticas. Ele lembra o quanto ficou emocionado na premiação e como este prêmio abriu novas portas para seu trabalho. “Eu fiquei muito feliz, muito emocionado, muito surpreso; eu não esperava”, relembra.
Mesmo com todo prestígio internacional, o fotógrafo ainda enfrenta muito preconceito por onde anda. Algumas pessoas ainda acreditam na visão do indígena selvagem, no meio do mato, e que não saberia lidar com as novas tecnologias digitais e caras.
O fotógrafo conta que, certa vez, foi questionado se ele realmente era indígena, pelo simples fato dele portar uma câmera fotográfica que custa 30 mil reais. Em resposta, explicou que ela é mais do que um equipamento em suas mãos, é uma arma pela luta da vida de seu povo, registrando sua comunidade e denunciando as violências sofridas por eles e a natureza. Em outra situação, revela que também foi questionado se os indígenas que tiram fotos não são mais indígenas.
Bob narra o quanto ficou curioso com a primeira máquina fotográfica que viu pela primeira vez e logo se interessou pela fotografia. Ele começou novo com apenas uma câmera digital pequena. Os anos se passaram e o amor pela fotografia só aumentou. Com o apoio de seu pai, cacique da comunidade de onde moram, em Xingu, no Mato Grosso do Sul, começou a trabalhar com fotografia e audiovisual de forma profissional.
Ele explica que aprendeu muito sobre a fotografia e o cinema em viagens nacionais e internacionais e com seu primo Takumã Kuikuro, cineasta e fotógrafo reconhecido internacionalmente por co-dirigir diversos filmes de longa e curta-metragem premiados como O Dia em que a Lua Menstruou (2004), O Cheiro de Pequi (2006) e As Hiper-Mulheres (2011).
Coordenador do Coletivo Kuikuro de Cinema, Takumã vem se dedicando também à formação de novos cineastas indígenas no Xingu, tendo feito a produção de vários curtas-metragens de oficinas. Teve filmes premiados em festivais como os de Gramado e Brasília, e no Presence Autochtone de Terres em Vues, em Montreal. Em 2017, recebeu o prêmio honorário Bolsista da Queen Mary University London. E foi, em 2019, o primeiro jurado indígena do Festival de Cinema Brasileiro de Brasília.
Para a pesquisadora e assistente social, Melissa Carvalho Gomes Monteiro, os movimentos sociais e culturais são de extrema importância para a manutenção da história e memória indígena. “Eles são os caminhos que dão visibilidade aos povos originários, possibilitam caminhos para que suas questões sejam escutadas. E são instrumentos para o exercício da cidadania e garantia do estado democrático de direito”, ressalta. Melissa é pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente (NIMA) e do Projeto UNICOM Amazônia, e se aproximou da temática indígena quando ingressou no mestrado.
Melissa entende a fotografia como arte que transforma o mundo. Para ela, as fotos não só revelam como também denunciam o que precisa ser visto pela sociedade. “A fotografia também é um caminho de construir imagens próprias, do outro, da cosmovisão. Ela é fundamental como denúncia e como auto imagem simbólica. A fotografia deve construir uma outra narrativa de nossa identidade nacional e deve estar nas mãos dos povos indígenas também”, explica.
Melissa reforça a importância da fotografia para o fortalecimento da dimensão cultural dos sujeitos, por meio da identidade que possibilita minimizar o preconceito e a violência por uma nova imagem, aspecto concreto da imagem dos povos indígenas e a contribuição deles para a história.
A formação de cada fotógrafo e comunicador indígena se dá dentro das próprias comunidades com a troca de conhecimentos dos mais para os menos experientes, como explica Bob. Outra forma de surgirem novos talentos é através de projetos que chegam até as comunidades indígenas, como aconteceu com o fotógrafo indígena Genilson Guajajara.
Ele participou de uma oficina de fotografia oferecida pelo Grupo de Estudos Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) e foi o seu primeiro contato e oportunidade ofertada para embarcar no mundo da fotografia. Depois, Genilson se formou em cinema indígena pelo projeto Vídeo nas Aldeias, que utiliza os recursos audiovisuais para fortalecer a identidade dos povos indígenas e sua cultura.
As fotografias de Genilson têm ganhado grande repercussão nacional e internacional. Suas fotografias já foram utilizadas em jornais de influência na Europa, além da indicação ao Prêmio Pipa 2021, que reúne inúmeros trabalhos de artes visuais. Dentre os retratos produzidos por Genilson estão inclusas fotos de alguns momentos dos rituais de sua comunidade, denúncias das queimadas e a representação do uso de máscara por sua comunidade no período da pandemia de Covid-19.
Com uma trajetória de vida ligada ao convívio na comunidade e no ambiente escolar, Edgar Kanaykõ Xakriabá, fotógrafo e mestre em Antropologia, foi o primeiro pesquisador indígena no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2019. Em sua dissertação de mestrado, ele produziu uma discussão sobre a utilização da fotografia pelos povos indígenas como instrumento de luta e resistência.
Edgar conta que pôde estudar na Escola Estadual Indígena da Aldeia Barreiro Preto (Dazakru Apkrẽwakdû), em São João das Missões (MG), e que o acesso a esse direito fundamental foi de extrema importância para sua formação. “Foi na tentativa de construir uma educação diferenciada indígena que cresci, visando o bem para nosso coletivo, nosso povo, nossa comunidade e eu, enquanto indivíduo e membro deste povo, me ofereci como instrumento para a busca deste saber”, reforça.
A fotografia indígena como registro da memória coletiva
A fotografia nasce ligada com o registro da memória, com a capacidade mental de codificar, armazenar e recuperar informações, sendo indispensável para a reconstituição do passado, por ser considerada um recurso fundamental para a compreensão da identidade e da história.
O fotógrafo e antropólogo Edgar Xakriabá produz registros fotográficos sobre a comunidade Xakriabá, outros povos e manifestações do movimento indígena no país. Ele atua em um importante movimento que surgiu nos estudos das imagens e narrativas imagéticas e audiovisuais indígenas, chamado etnofotografia. O termo foi cunhado nas pesquisas de Antropologia sobre a atuação dos povos indígenas na fotografia, pelo antropólogo Luiz Eduardo Robinson Achutti, que estuda os dados coletados de povos e culturas indígenas por meio do registro fotográfico.
Edgar reforça sua visão acerca da fotografia como fonte de memória e preservação. “Penso a produção de imagem fotográfica como um meio de registro dos aspectos da cultura e da vida de um povo. A fotografia historicamente por assim dizer, é inicialmente mal vista entre as comunidades indígenas, que passam a apropriar-se dela como uma forma de revelar o que os olhos não podem ver”.
No contexto da fotografia indígena, as imagens assumem este valor de instrumento fundamental para a memória coletiva. A fotografia é importante para retratar o modo de vida e costumes dos povos indígenas, como ressalta Genilson Guajajara. “Todo lugar e toda coisa tem um significado, mas a imagem consegue mostrar pras pessoas detalhes. E então para o jovem, você consegue mostrar pra ele que a cultura dele é bonita, que tem todo um significado e história e que aquilo precisa ser fotografado e as fotografias têm esse impacto positivo dentro do território de preservar o que nos foi deixado, proteger nosso território e cultura”, considera Genilson.
Do passado ao presente: a fotografia hoje sob a ótica indígena
O fotógrafo indígena Genilson Guajajara faz uma crítica das imagens produzidas e publicadas por não indígenas. “Os não indígenas, que não estavam dentro das aldeias, contaram histórias ou acontecimentos totalmente distorcidos. E a mídia tradicional acabava levando o lado ruim do que é realmente interessante e do que é de verdade”, refletiu.
Christoph Albert Frisch foi o fotógrafo responsável pelas primeiras fotografias dos indígenas brasileiros realizadas na Amazônia no século XIX. As fotos de Frisch reforçaram a ideia de uma Amazônia “exótica e selvagem”. No período, os registros foram muito valorizados por estudiosos europeus de etnografia e por viajantes estrangeiros em geral, que não tinham nenhum tipo de acesso a essas comunidades e viam esses povos apenas pela lente desses fotógrafos.
Um pouco mais adiante, em 1890, Marechal Rondon chefiou a Comissão Rondon, que tinha como objetivo principal ocupar a região Norte do País, para implantar linhas e postos telegráficos pelo interior do país. Na expedição, Rondon estabeleceu contato com dezenas de povos indígenas que se encontravam nas rotas traçadas, produzindo grande volume de material etnográfico e iconográfico. O engenheiro militar reconhecia o poder persuasivo da imagem. Durante suas expedições, produziu fotos e entre 1946-1953 publicou a coleção Índios do Brasil, que tange a produção visual registrada desde o início dos trabalhos das Comissões Construtoras de Linhas Telegráficas no Estado de Mato Grosso (1890).
Os fotógrafos indígenas não são os únicos interessados na produção da fotografia mais próxima da realidade e na desconstrução de estereótipos e visões distorcidas. Utilizando a fotografia moderna para rever essas visões do passado, o jornalista e fotógrafo não indígena Thiago Daher começou a produzir fotografias indígenas de forma independente, a partir de uma manifestação em apoio às demarcações de terras indígenas, conhecida como Janeiro Vermelho, em 2019. Dentre as suas experiências, Thiago descreveu cuidados essenciais que são necessários para respeitar as comunidades que visita.
“No que diz respeito à fotografia, nos foi orientado a não fotografar os povos durante as refeições e ter bastante cautela com as crianças. Claro que o bom senso também faria parte, estar atento às situações e conseguir perceber quando e onde não valeria a pena registrar o momento”, esclarece.
Daher teve a oportunidade de dormir na casa tradicional do povo do Alto Xingu e, em vários momentos, optou por não fotografar, apenas apreciar o momento. “Na hora, pelo fato de querer vivenciar aquilo ali sem registro mesmo, deixando de lado um pouco a câmera. Em outra hora, por julgar necessário deixar a liberdade individual do momento e simplesmente tentar não incomodar. Levando em consideração meu tipo de fotografia, foi um desafio grande conseguir me colocar no lugar certo, num lugar tão grande, para registrar o que achava necessário”, explicou.
Quando perguntado sobre a história de uma imagem que o marcou de alguma forma, Thiago conta que fez uma foto de uma garotinha Guarani que gostava muito. “Ela me encontrava quase todos os dias e a gente conseguia se comunicar de forma muito bonita, mesmo que não verbalmente”, narra.
E recordou da própria infância, das brincadeiras e da simplicidade. “No fim das contas, ela me ensinou mais uma vez que o caminho que eu sigo no meu trabalho faz sentido: tocar alguém de alguma forma, e que isso seja semente para outros momentos, outras pessoas e com certeza novos sonhos e formas de aplicação do meu trabalho”, completa.
EQUIPE DE PRODUÇÃO JORNALÍSTICA:
Edição final: Noêmia Félix da Silva e Gabriella Serrano
Redação da reportagem: Laís Queiroz e Nívia Menegat
Repórteres: Laís Queiroz, Mariana Machado e Nívia Menegat
Fotografias: Kuiaitsi Kuikuro, Edgar Kanaykõ Xakriabá, Genilson Guajajara, Thiago Daher, Luiz Thomaz Reis e Albert Frisch
Supervisão Geral: Noêmia Félix da Silva (Jornalismo Científico e Ambiental) e Carolina Zafino (Ciberjornalismo)
* O conteúdo produzido e publicado no Impressões é resultado de um processo de aprendizado pedagógico do curso de Jornalismo da PUC Goiás dos alunos nas disciplinas de Jornalismo Científico e Ambiental e Ciberjornalismo.